Cálculos imagéticos

Marília de Azambuja Ribeiro

  • Matemática em perspectiva

    Clique sobre a imagem para amplia-laEsta é a primeira página de uma cópia manuscrita do “Tratado de Perspectiva”, do jesuíta Inácio Vieira (1678-1739). Conservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o material é fruto dos cursos de matemática que Vieira ministrou em Lisboa.

    O Tratado, de 306 fólios, é escrito com um tipo de letra cursiva muito difundida em Portugal na primeira metade do século XVIII e encontra-se encadernado junto com o “Tratado de Ótica” do mesmo autor, que o precede no códice. Os supostos autógrafosdesses dois manuscritos vieirianos encontram-se conservados na Biblioteca Nacional de Lisboa.

    Uma das características do documento é a abreviação de palavras, bastante comum no século XVIII, feita pela supressão de letras – é o caso de “q” (que) – ou pelo recurso de letras sobrepostas – como em “m.to” (muito).

    Muitas palavras encontram-se grafadas de maneira arcaica, como “Mathematicas” (Matemáticas), “prespectiva” (perspectiva), “lenso” (lenço) e “dous” (dois). Certos verbos foram escritos com a terminação “ão”: “formão” (formam), “vierão” (vieram) e “parecião” (pareciam). Em alguns casos, as consoantes aparecem duplicadas, como em “aquella” (aquela), “della” (dela) e “elle” (ele). A letra “h” se destaca no início de algumas palavras, como em “hum” (um) e “hera” (era).

    Bastante frequente nesse período é o uso indiscriminado das letras “i” e “j”, como podemos ver nas grafias das palavras “Foj” (Foi), “mejo” (meio), “cujdando” (cuidando) e “manejra” (maneira). E há casos em que uma mesma palavra é grafada de modo diferente: “lenso” e “lensso”; “objetos”, “objecto” e “objettos”; “incignes” e “encigne” (insigne).

    Na última linha, na margem inferior direita do fólio, o autor usa um recurso corriqueiro na documentação setecentista: insere as primeiras letras do início da página seguinte.

    Marília de Azambuja Ribeiro é professora da Universidade Federal de Pernambuco e co-organizadora de Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico (Editora da UFPE, 2012).

    Arte matemática

    O padre Inácio Vieira foi um importante matemático de Portugal no primeiro quarto do século XVIII: entre os anos de 1701 e 1708 ensinou no Colégio de Jesus, em Coimbra, e entre 1709 e 1720 ministrou vários cursos de matemática aplicada na Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão da Companhia de Jesus, em Lisboa.

    Em 2008 foi organizado um inventário completo das obras produzidas no contexto da Aula da Esfera entre os séculos XVI e XVIII,no qual não é mencionado esse manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Aparentemente, trata-se do único material ligado àquela que foi a mais importante instituição de ensino e de prática científica no Portugal moderno e que se encontra fora do país. O documento é, até hoje, desconhecido dos especialistas.

    Um dos aspectos mais interessantes do Tratado de Perspectiva de Vieira é o fato de que ele se dedica ao estudo do tema não somente do ponto de vista daperspectiva naturalis euclidiana, mas também como técnica de representação ilusória do espaço utilizada pelos artistas na construção de imagens pictóricas.

    É relevante o fato de Vieira iniciar seu tratado com uma anedota retirada da História Natural de Plínio, o Velho. Ela conta a lendária competição entre os pintores gregos Zeuxes e Parraso, principal testemunho do valor atribuído à pintura ilusionística na Antiguidade e modelo sobre o qual se construiu todo o edifício da tradição pictórica europeia desde o Renascimento. Afinal, como afirma o próprio Vieira, “toda pintura pertence à perspectiva”.

    Solução do “Decifre”

    Trattado da Prespectiva

    Prologo

    Não duvido que a esta parte das Mathematicas, à prespectiva se a tomarmos no seu rigor, pertence tudo o que cae nos olhos, e na vizam: porem o uzo a restingio a menos espaço, e fes que este nome só se atribuisse aquella parte que de tal sorte dispoem no lenso as imagens dos objetos, que essas mesmas asim debuxadas formão nos olhos imagem muito similhante ao seu objecto, e a mesma que esses mesmos objettos formarão se se nos prepuzecem a vista; donde nace que toda á pintura pretence a prespectiva. Foj muito selebre e venerada esta ciencia en todas as idades, e tempos podece por mejo della emganar a mesma natureza: Compitindo em hua ocazião dous incignes pintores, qual dos dous hera mais encigne e pirito na sua arte, vierão a partido que aquelle sahiria com palma que mais ao vivo imitace a natureza; pintou Zeuces hum delles huas poucas de uvas com tal viveza, e prefejção que expostas aos olhos de todos não parecião senão naturais de manejra que as Aves cujdando ser verdadejras vinhão picar nellas; o seu contrario Parrhazio que esperava o sucesso do seu compitidor não levado deste artificial engano, nem dezesperado da vitoria; pegou do lensso, e sobre elle pintou hum veo tão tenue, e tão ao proprio que pendurando o quadro na salla, e vindo o seu compitidor Zeuces a levar a palma, lhe pidio com toda a instancia tirace o veo que queria ver a pintura que emcobria. Descobriolhe Parrhazio