Caminhos da violência

Alessandro Brach

  • No ano passado, três integrantes do movimento white power skinheads foram detidos por espalharem na cidade de São Paulo cartazes condenando as cotas para negros nas universidades. O texto do cartaz: “Vestibulando branco. Hoje eles roubam sua vaga nas universidades públicas. E chamam isso de direitos iguais. Se você não agir agora, quem nos garante que eles não roubarão vagas nos concursos públicos?”. Os autores do protesto eram skins inspirados em grupos supremacistas brancos europeus e norte–americanos. O crime se inscreve em uma longa trajetória de ações violentas protagonizadas por skinheads brasileiros, racistas ou não, desde o início da década 1980.

    A lista de delitos cometidos por skinheads somente nos últimos anos não é pequena. Em 6 de fevereiro de 2000, cerca de vinte membros do grupo Carecas do ABC espancaram até a morte, com chutes e golpes de soco-inglês, o adestrador de cães Édson Néris da Silva, 35 anos, na Praça da República, cidade de São Paulo. Motivo da agressão: a vítima estava de mãos dadas com outro homem, que teria conseguido fugir. Em Porto Alegre, dois punks foram espancados por cerca de quinze white power skins em uma tarde de dezembro de 2002, na Usina do Gasômetro, tradicional espaço de cultura e lazer da capital gaúcha. No dia 7 de dezembro de 2003, três supostos integrantes dos Carecas do ABC obrigaram Flávio Cordeiro, 16 anos, e Claiton da Silva Leite, 20 anos, a saltarem de um trem em movimento no município de Mogi das Cruzes (SP), pois estavam vestindo roupas que indicavam sua ligação com o movimento punk, o mais tradicional inimigo dos skins no Brasil. Cordeiro teve parte de um braço amputado e Silva Leite morreu oito dias depois do incidente.

    Alguns grupos de skinheads, porém, se esforçam para fugir da fama de agressivos,  xenófobos e anti-semitas. O lema “skinheads: odiados por muitos, conhecidos por poucos”, adotado por esses grupos, expressa um sentimento de perseguição. Os skins se dizem injustiçados. Ainda assim, o registro de tantos crimes nos mostra que a violência é um elemento essencial a estes grupos – a violência faz parte de ser skinhead.

    O aparecimento dos skins – sob a alcunha de “carecas” – em solo brasileiro ocorreu no início da década de 1980, em meio à efervescência local do movimento punk. O termo punk é uma gíria da língua inglesa atrelada à idéia de delinqüência juvenil. No clássico filme “Juventude Transviada” (1955), o personagem de James Dean é chamado de punk por um policial. Foi ainda no final dos anos 1970 que os punks deram sinais de sua existência no Brasil. Numericamente irrelevantes e desvinculados de qualquer ideologia, costumavam brigar e cheirar cola pela periferia da capital paulista, especialmente na Zona Leste e na região do ABC. Esta situação começaria a se transformar em 1981, quando Fábio Sampaio, vocalista da banda Olho Seco, inaugurou a loja Punk Rock Discos em uma galeria de São Paulo. O local se tornou ponto de encontro dos punks. Com a Punk Rock Discos chegaram ao Brasil informações mais precisas do exterior sobre o que era ser integrante do movimento: o punk era muito mais do que brigar, inalar solventes e chutar latas de lixo. Era acreditar na anarquia e protestar contra os males que afligiam o Brasil e o mundo naqueles dias, especialmente o regime militar, a violência policial e os arsenais nucleares norte-americanos e soviéticos.

  • 1982 foi o ano do punk no Brasil. De loja, a Punk Rock tornou-se gravadora independente, lançando os primeiros vinis de bandas nacionais. A coletânea “Grito Suburbano”, com Inocentes, Cólera e Olho Seco, abriu a série. Com pouco dinheiro e equipamento precário, a qualidade das gravações era ruim, mas conferia inocência e pureza dignas de admiração, inclusive entre gravadoras e revistas do exterior. Também naquele ano surgiram os primeiros fanzines, publicações independentes feitas a partir de colagens, textos manuscritos e datilografados e reproduzidos em fotocopiadoras: Factor Zero e SP Punk. Com sua linguagem simples e recheada de erros ortográficos, os fanzines procuravam sintetizar de forma escrita as angústias desses jovens pobres e marginalizados dentro de um estado que nada lhes oferecia além das cacetadas da polícia.

    Essa consciência coletiva anárquica e pacifista, porém, não foi aceita por todo o movimento. Principalmente porque houve nele uma inserção de jovens de classe média a partir da metade da década de 1980. O punk encarava o sério risco de não mais ser uma ameaça social, pois se tornara um artigo de moda, incapaz de chocar. Em contrapartida, a popularização levaria os grupos musicais a vender mais discos e daria mais voz ao movimento. Para os suburbanos reticentes, que viam no pressuposto da pobreza a principal razão de ser do punk, essas mudanças descaracterizaram a originalidade do movimento no Brasil. Era hora de romper com o que havia dado ao punk sua popularidade passageira.

    Como sua matriz britânica, os skinheads brasileiros surgiram como um grito de revolta contra a massificação do punk.  Há, porém, elementos originais no processo de transformação que se deu aqui.  Assolados pela mesma falta de conhecimento a respeito do que ocorria no exterior que vingou entre os punks no princípio, esses jovens de cabeça raspada negaram a alcunha britânica, autodenominando-se “carecas”.

    Como os skins europeus eram reconhecidos internacionalmente por sua associação ao neonazismo, havia o desejo dos brasileiros de não estabelecer um vínculo direto com este tipo de prática. Raspar o cabelo era, para eles, somente uma forma de se diferenciarem dos cabelos espetados ou cortados em estilo moicano, que enfeitavam também certas cabeças socialmente privilegiadas. Os primeiros “carecas”, então, não eram mais que os punks da Zona Leste e do ABC, que se afirmavam pela pobreza e pela violência. Mas reduzir-se a essas características não garantiria sua individualidade.

  • Para conquistar essa identidade particular, os “carecas” passaram a exaltar sua origem operária. Ainda que a naturalidade desse processo possa ser questionada, não há como omitir a influência da moral proletária no pensamento conservador e carregado de orgulho dos “carecas”. O punk era um grito de rebeldia contra o antigo, e como os futuros skinheads do Brasil colocavam-se em oposição aos primeiros, não há por que estranhar essa guinada em nome da tradição. A antropóloga Márcia Regina da Costa sintetiza esse momento de afirmação: “Os futuros ‘carecas’ eram jovens pobres, proletarizados, tinham que trabalhar para sobreviver. Ao mesmo tempo, expressavam vários dos valores típicos dos trabalhadores de modo geral, como a busca de dignidade no trabalho, o respeito, o reconhecimento social, além de assumirem freqüentemente posturas moralistas e nacionalistas”. Além disso, o movimento assumiria uma postura antidrogas, algo titubeante no início, mas que se tornou elemento obrigatório para aqueles que desejavam ser “carecas”. O culto da força física por razões óbvias e a negação ambígua do racismo também foram incorporados. Esses valores moldaram os Carecas do Subúrbio e, a seguir, os Carecas do ABC e do Brasil, compondo um nacionalismo desorientado e precário, conseqüência de pouca leitura e muita transmissão boca a boca.

    Mas os ventos do exterior se tornavam mais intensos à medida que o movimento “careca” crescia ao longo das décadas de 1980 e 90. As informações vindas da Europa, especialmente através da música, demonstravam a existência de outras linhagens além da naziskin – movimento skinhead ligado ao neonazismo – para servir de exemplo. Muitos grupos perceberam que bastava deixar o racismo de lado para que os demais elementos fossem absorvidos. Nesse contexto, nasceram as primeiras bandas brasileiras de oi! music (ver box), vinculadas ao punk rock, caso de Garotos Podres e Vírus 27, já que ainda existia uma tênue e tensa relação entre “carecas” e punks. Mas, além da música, a predileção pela violência aproximou ainda mais os “carecas” dos skins europeus. E essa proximidade facilitou a entrada daqueles elementos que eram negados no início, caso do racismo e do anti-semitismo. Se há alguma explicação para que isso tenha acontecido em um país com uma formação tão diversa em termos raciais, trata-se apenas de entender o nazismo como a marca da maldade, algo que muitos skins desejam simbolizar. Em suma, os skinheads não buscam conhecer o pensamento nazista e não o consideram uma forma adequada de governo; eles se identificam apenas com a brutalidade com que os nazistas tratam seus inimigos.

    Definitivamente rompidos com o punk a partir do acirramento dos conflitos no final dos anos 1980, os “carecas” encarariam o surgimento de cisões internas mais claras na década seguinte e no começo do século XXI. Contribuíram decisivamente o crescimento numérico e o surgimento de núcleos em outros estados. O fator mais importante seria o nascimento de uma versão brasileira dos white power skinheads, também em São Paulo. Inicialmente, seus integrantes eram “ex-carecas” que professavam uma curiosa analogia apreendida do poder branco europeu: da mesma forma que a imigração de africanos e asiáticos é tida como responsável pelo desemprego e pelo achatamento dos salários na Europa, são os nordestinos aqueles que roubam os empregos e desvalorizam a mão-de-obra originária do estado mais rico do Brasil. Sobre os negros, os white power afirmam sua inferioridade racial com base em uma suposta natureza marginal e pouco afeita ao trabalho, além de estatísticas que não levam em conta a perspectiva histórica, assim como o reconhecimento de que a população carcerária brasileira é predominantemente negra. Para eles, aparentemente, a escravidão não deve ter existido por aqui.


  • Por ser um movimento formado por jovens, o skinhead tem um caráter transitório. O passar do tempo provoca tanto o afastamento de antigos integrantes como a aproximação de novatos, assim como as migrações de um lado para outro. Este câmbio não raro possibilita a entrada de novas idéias, ao mesmo tempo que não permite o amadurecimento de outras. O movimento continuará tendo um caráter juvenil, ideologicamente frágil e marcado pela violência. Mapear claramente as ideologias defendidas pelos “carecas” é tarefa impossível. Afinal, afirmar-se como um jovem nacionalista pode dizer muitas coisas ou mesmo não dizer nada. Trata-se de um universo nebuloso, reconhecido somente pelas suas práticas violentas e preconceituosas. Assim foram, são e continuarão sendo os skinheads do Brasil: muito mais um caso de polícia do que defensores de um sistema ideológico dado à discussão.

    Alessandro Bracht é mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com a dissertação “Skinheads no Brasil: trajetória e nacionalismo”, e professor do ensino médio na Rede Pública Estadual de Ensino do RS.