Caras e Caretas

Sheila do Nascimento Garcia

  • Na década de 1970, o artista Ziraldo já sugeria: “O humor é uma forma criativa de analisar criticamente, descobrir e revelar o homem e a vida. O humor é um caminho!”. Considerada uma das modalidades mais expressivas do humor, a caricatura demonstrou, no decorrer da história, seu grande potencial para promover questionamentos, despertar protestos e, principalmente, formar opiniões. O aspecto cômico dos desenhos de humor se revela por sua capacidade de provocar novas idéias sobre a nossa realidade, estimulando o público leitor a interagir com a arte.
    Buscar formas alternativas que ajudem no processo de ensino-aprendizagem é um dos principais desafios enfrentados pelos profissionais da educação. A escola convive cada vez mais com os meios de comunicação de massa, como a televisão, o cinema, a Internet e a própria mídia impressa como formas de acesso à informação, itens estes que põem em xeque métodos de ensino baseados apenas em aulas expositivas ou na mera reprodução de conteúdos dos livros didáticos.

    Para os professores de História, dialogar com esse ritmo frenético de imagens e informações, estabelecendo pontes entre a realidade dos alunos e os conteúdos a serem ministrados, torna-se um importante instrumento para uma aprendizagem significativa. Neste sentido, algumas questões são recorrentes: como conferir um aspecto dinâmico às aulas? Como envolver os alunos, favorecendo a descoberta de uma História não mais distante e teórica, mas vinculada à existência de cada indivíduo? O trabalho com charges e caricaturas em sala de aula surge como uma possível resposta a essas indagações. 


    Para material de trabalho, foram selecionadas imagens de humor publicadas pela revista carioca Careta, semanário fundado por Jorge Schmidt em 1908 e que circulou durante todo o Estado Novo. Nestas charges, nota-se o esforço da revista para difundir uma “contra-imagem” de Vargas, na qual o riso dúbio e ideológico revelado pelos humoristas do traço estabelecia um confronto direto com o sorriso paternalista divulgado nos folhetos de propaganda.

  • A escolha do período correspondente aos anos de 1937-1945 como recorte temporal para atividade ocorre devido ao reconhecimento da dimensão ideológica do projeto político do Estado Novo, no qual se observa, por um lado, a tentativa de construção de uma “imagem oficial” do regime e, por outro, a criação de aparatos com o intuito de impedir a profusão de mensagens pejorativas ou contrárias à ordem estabelecida.

    Acredita-se que, ao conseguirem apreender o universo da Era Vargas por meio das imagens de humor – que são construídas e dadas a ler por um tempo, espaço e grupo específicos –, os alunos estarão aptos a alçar vôos maiores: compreender a História e sua própria realidade.

    Mas antes de convidar os alunos a “mergulhar” nas imagens produzidas na época, é imprescindível orientá-los para uma pesquisa prévia, que pode ser feita em grupos de trabalho. O levantamento deve abranger informações sobre o governo de Getulio Vargas e o Estado Novo, salientando as relações existentes entre o panorama político, os meios de comunicação e a produção cultural do período. Algumas questões devem ser observadas: como a imagem de Vargas é retratada nesses materiais (livro didático, obras gerais, enciclopédias, revistas, Internet)? Qual a tônica dos discursos? Qual o espaço destinado à imprensa? Existia liberdade de expressão?  

    Chefe do Governo Provisório desde 1930, Getulio Vargas fora eleito presidente constitucional do Brasil em 17 de julho de 1934 pelo voto dos membros da Assembléia Nacional Constituinte. Seu mandato, que a princípio se estenderia até 1937, foi prorrogado até fins de 1945 por meio de um golpe que instaurou o Estado Novo.

  • Um aspecto importante desse período refere-se ao processo de montagem do sistema de propaganda governamental, cujo objetivo era reforçar o carisma de Vargas como líder político. O órgão responsável pela criação e divulgação do discurso oficial, por meio de livros, revistas, folhetos, cartazes, programas de rádio, além de fotografias, cinejornais e documentários, era o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em dezembro de 1939.

    Como exemplo, a imagem veiculada na cartilha escolar permite notar a confluência de elementos visuais que enfatizam o aspecto carismático do governo e, em especial, de Getulio Vargas, pois a figura do presidente, além de ser apresentada numa perspectiva superior em relação às demais, também explora a idéia de identificação e harmonia entre o governante – que observa a multidão, dirigindo a ela seu sorriso e suas ações (gesto simbolizado pela mão estendida) – e a representação do povo, construída a partir de inúmeros rostos de crianças e jovens, que corresponde prontamente, sorrindo e dirigindo seu olhar atento para cima. Mas seria este o único registro ou um retrato fiel dos acontecimentos do período?

    Utilizando-se da sátira como estratégia crítica, a revista Careta apresentava ao público novas e múltiplas formas de leitura sobre seu tempo, expondo com criatividade o clima tenso de disputas, conchavos e estratégias políticas. Nos desenhos de humor veiculados, também se observa a construção da narrativa cômica a partir da imagem de Getulio Vargas como protagonista, na qual suas ações remetiam à idéia de perigo, armadilha e estratégia, como na charge em que o personagem é apresentado com o bolso cheio de tachinhas, a fim de impedir a corrida de seus adversários. Em outra charge, o candidato José Américo aparece caminhando, imponente, com o discurso na mão. No primeiro plano está Getulio, escondido e à espera do rival, com uma linha estrategicamente preparada para fazê-lo tropeçar.

    A despeito das novas medidas governamentais, o desenho de humor retratou também a figura de Vargas “arquivando” todos os símbolos considerados nocivos à idéia de centralização: diversas bandeiras, rolos de papel simbolizando a produção partidária, além de bonecos engraçados representando vereadores, governadores e demais representantes políticos. Esta charge se refere de maneira crítica ao decreto de 3 de dezembro de 1937, que extinguiu as atividades dos partidos políticos.

  • A escolha dos elementos visuais e a disposição das figuras, na qual os insetos são apresentados em tamanho consideravelmente superior ao presidente, contribuem para a construção de uma mensagem crítica na qual o intenso controle estatal e a censura eram satirizados de forma simbólica. Diante da repressão, os insetos foram apresentados como os únicos “sobreviventes” da ação varguista.

    Finalmente, em mais uma charge apresentada, os alunos também poderão compreender múltiplos significados: em primeiro lugar, a representação de toda a dinâmica política e social brasileira por meio de uma cena cotidiana, o andar pela faixa de pedestres; em segundo, a figura de Getulio  no alto do prédio, o que sugere seu perfil de elemento organizador e controlador desse movimento. Além das imagens, uma atenção especial deve ser dirigida ao trocadilho lingüístico contido na legenda: ao exclamar “Não liguem para os despeitados que dizem que isso é ‘faixismo’”, a revista promovia uma identificação simbólica entre o regime do Estado Novo e a experiência fascista européia.

    A utilização da linguagem visual do humor, portanto, proporciona um novo olhar sobre o citado momento histórico. Afinal, se por um lado tem-se um forte projeto político-ideológico que visava legitimar uma determinada “imagem oficial”, por outro, o exercício com as charges permite a compreensão de como tal projeto não foi algo generalizante, mas, sobretudo, marcado por espaços de oposição que conseguiram sobreviver durante todo o Estado Novo.

    Sheila do Nascimento Garcia é Mestranda em  História Social pela  Universidade  Estadual Paulista (UNESP/ASSIS) e autora de "Fazendo Careta(s): Humor Visual como Estratégia Crítica em Tempos de Censura (1937-1945)”, Publicado em XXII Semana de História - O Gpe de 1964 e os Dilemas do Brasil Contemporâneo. (UNESP/ASSIS, 2004).