Carlos Moore

Entrevista por Juliana Barreto Farias

  • [FOTO TERRA]

     
    Em defesa da negritude

     

    Há mais de 5 mil anos grupos de pele, olhos e cabelos bem claros teriam deixado a Ásia e a Europa central em direção às terras quentes do sul. Ao chegarem, encontraram uma enorme “população compacta” de pele negra. E os conflitos se tornaram inevitáveis. Nascia aí o racismo. Quem garante é o escritor e cientista político Carlos Moore, que por cerca de 40 anos realizou pesquisas sobre o tema nos quatro cantos do mundo. Vivendo atualmente em Salvador, este cubano de 72 anos, que saiu da ilha em 1963, morou em diversos países e conviveu com intelectuais e artistas negros fundamentais à história do século XX, como James Brown, Malcom X, Aimé Césaire e Fela Kuti. Nesta conversa com a Revista de História, na varanda de sua ampla casa no bairro de Nazaré, ele fala de raça e preconceito e também de teses mais controversas, como o racismo de Marx e Engels e a repressão cubana aos movimentos negros.

     

     

    RH: Por que o senhor não considera adequado falar em raça e racismo apenas a partir do século XIX?

    CM: Pegar esse marco acadêmico habitual, de um racismo científico ou da origem do racismo, não tem nenhum valor histórico. A verdade histórica é aquela que remonta a conflitos profundos e graves que aconteceram entre as populações de pele branca, clara, que vieram da Ásia, da Europa central, e invadiram as terras quentes do sul. Essas populações, claro, estavam em um processo migratório, uma consequência da última glaciação. Então todas que foram avante, que antes ficavam presas pelas grandes montanhas de gelo, presas por lugares como a América do Norte, o norte da Europa e o norte da Ásia, começaram a migrar para as terras mais quentes, as terras do sul. No caso dos europeus ou protoeuropeus, eram populações de pele clara, olhos azuis ou verdes, cabelos ruivos ou amarelos. De repente, eles são confrontados por uma multidão de povos de pele negra, totalmente diferentes. E a pele negra passou então a ser a linha de divisão. Foi o fenótipo que criou o conceito de raça, e não os cientistas do século XIX.

     

    RH: E como surgem as diferenciações, as desigualdades entre esses grupos?

    CM: Quando eles entraram em contato, há 5 mil anos. Foi aí que o fenótipo emergiu como linha divisória, separando os leucodermes dos melanodermes. Por causa de todas essas interações o racismo vai surgir. Não simplesmente porque os grupos se viram, mas porque esse grupo que invadiu era minoritário demograficamente, e conquistou zonas onde a maioria era de pele negra. E quando isso acontece, há um problema muito sério, que só pode ser resolvido através da imposição do regime do apartheid. Se a interação sexual entre os dois grupos for permitida, por exemplo, o grupo minoritário vai desaparecer. Pegue 15 brancos que venham para o Brasil. Se eles começam a se misturar com a população majoritária, em 25, 30 anos, esse grupo de brancos não existe mais, porque ele é absorvido pela maioria.

     

    RH: Em que áreas aconteceram esses primeiros contatos?

    CM: Em toda a região que vai do Egito até a Índia, uma zona de ocupação, toda a Europa central e toda a Ásia. Nessas invasões os grupos leucodermes desceram na Europa e na Ásia, e então se confrontaram com uma população compacta majoritariamente negra. Os negros chegaram ao Brasil há 25, 35 mil anos, e povoaram essas terras. Mas eles foram logo dizimados por outras invasões que vieram da Ásia, um dos grupos que hoje chamamos de indígenas. Mas estou aqui falando de negros entre aspas, porque essas populações não sabiam que eram negras no sentido de que tinham uma pele preta, mais preta do que eu. Negro já é um conceito racializado. São assim chamados porque existe uma população minoritária que os designa como tal.

     

    RH: E o que de fato caracterizaria o racismo no Brasil?

    CM: O Brasil não é um país específico em relação ao racismo, não acredito nessa questão da singularidade brasileira. O país pertence a um modelo de racismo íbero-latino-americano. Os árabes trouxeram um modelo do Oriente Médio que se aclimatou na Península Ibérica com a escravidão negra e durou mais de seis séculos. Então, quando espanhóis e portugueses vêm para estas terras, vêm com um modelo de escravidão racial e de sociedade racializada. E que também predomina em Colômbia, Cuba, República Dominicana, Porto Rico. Mas ele se adapta às condições locais. Enquanto no Brasil o pardo ainda é negro, no Peru, no Equador ou na Bolívia, o mestiço é considerado branco. Então, nesses países, você encontra pessoas com os traços fenotípicos indígenas, mas são tidos como brancos, e que discriminam você, são profundamente racistas.

     

    RH: São mestiços, filhos de negros, e racistas.

    CM: É normal, o racismo é isso. A partir do momento em que, por conta do racismo, se diz que o negro é perverso, feio, sujo e corresponde a tudo o que é negativo, quem vai querer estar associado a isso? Ninguém. Os negros vão querer fugir a todo custo. Casam com brancos para fugir da negritude e dizem que é uma questão unicamente de amor. Mas até que cheguem a resolver o problema da negritude que está na cabeça deles, não é verdade que casam apenas por amor, compreende? Neste caso, é para fugir, para que os próprios filhos tenham a pele branca e tenham acesso à sociedade branca. Por isso o racismo é tão perverso.

     

    RH: E isso se repete em outros países?

    CM: Claro, não há um país onde se encontre uma dinâmica diferente. Os negros buscam se branquear de todos os jeitos possíveis. E o branqueamento genético é uma prática que a sociedade branca coloca não somente como condição de possibilidade, mas como uma obrigação. Quando você encontra pessoas negras casadas com pessoas negras, a sociedade reprova.

     

    RH: Quando a isso se junta a questão da classe social, a situação fica ainda mais complicada.

    CM: Aí é um escândalo. Classe social e raça andam paralelamente interferindo uma na outra. Convergem, se separam, convergem de novo, se separam outra vez. Formam uma dinâmica perversa. Por isso a história do Obama foi um choque cultural no imaginário racista mundial. Porque se trata de um negro bem-sucedido, que não utilizou seus antecedentes de intimidade com uma sociedade branca. Sua mãe era branca e casou com um africano. Mas sempre foi uma mulher muito consciente, com uma visão muito profunda sobre o racismo. Contrariamente à maioria das mulheres brancas que se casam com negros e têm uma visão racista, e cujos filhos não são levados a assumir a negritude. Ao contrário, cada vez mais se incorporam à sociedade branca. E como negros se tornam alienados, sem uma visão clara daquilo que está acontecendo com eles próprios. Obama feriu isso de forma profunda. Chegou e ganhou, entrou e lutou pela Presidência, com uma mulher inequivocamente negra ao lado dele. Com um discurso “não me chame de qualquer outra coisa senão negro, eu sou negro, fui sempre negro e sempre o serei”. Não permitiu que o confundissem.

     

    RH: E como se dão as relações entre marxismo e racismo, tema de um dos seus livros?

    CM: Quando saí de Cuba, me perguntava: “como pesquisar sobre a questão racial em Marx e Engels”? Comecei a reler suas obras e fui percebendo indícios de que tinham uma filiação muito forte com a raça deles. Até que tive o primeiro choque ao encontrar cartas em que aplaudiam as agressões do Ocidente na Índia, na China e na Indonésia. E outra coisa incrível: Marx tinha ido para a África! Não sabia disso. Encontrei cartas escritas na África do Norte, para onde foi – aconselhado por seu médico – para tratamento de asma. Precisamente no momento em que os franceses estavam ali invadindo e conquistando, e ele aplaude essas conquistas. Ele também atacava os inimigos que tinham sangue negro, cabelo carapinha, como se isso fizesse as pessoas ruins. Fui juntando tudo isso e coloquei uma questão fundamental: se todos eles têm esses sentimentos negativos em relação aos africanos, se consideram que a escravidão ajudou os negros a saírem da barbárie e do primitivismo, então não sabem da revolução haitiana que precisamente acabou com a escravidão. Um silêncio total.

     

    RH: A questão racial e o racismo estariam então mais ligados às visões de Marx e Engels do que propriamente ao movimento marxista?

    CM: Sim, peguei o lado pessoal deles. Mas se eram tão profundamente racistas, o que era a ideologia que pregavam? Marx e Engels diziam que se o socialismo ganhasse na Europa, as colônias continuariam a ser colônias, uma colonização socialista. Então, queria levar isso aos marxistas: “Olha, tenham cuidado, porque aqui vocês estão utilizando o marxismo como religião”. Muitos argumentavam que eles tinham a visão do seu tempo. Mas compare Marx e Darwin, eles eram da mesma época. Darwin veio ao Brasil no meio da escravidão e escreveu muitas cartas falando do horror que sentiu. Da casa onde estava, ouviu uma escrava sendo açoitada e se sentiu profundamente mal porque não podia fazer nada. Falou que nunca mais colocaria os pés num país deste. Uma visão contrária à de Marx e Engels. Eles eram racistas! E o racismo se encontra dentro do marxismo.

     

    RH: Mesmo o movimento marxista?

    CM: O racismo é uma visão eurocêntrica, em todos os países. Onde quer que o marxismo se instale, também se instala o racismo dessa visão eurocêntrica.

     

    RH: E quando o marxismo inspirou os movimentos de libertação na África?

    CM: Todos esses movimentos, que mobilizaram os povos para ganhar o poder, quando ganharam, começaram a implementar políticas racistas. Todos, começando por Angola, onde os mulatos, os de pele clara, dominam. Em Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde... Houve uma visão racista, que está dentro do marxismo.

     

    RH: Então isso viria da visão que o próprio Marx esboçava em suas obras?

    CM: Claro, e o exemplo de Cuba é o melhor. E do Brasil também! Porque aqui os partidos comunistas e de esquerda nunca tiveram um negro como líder, em um país de população majoritária negra. Nunca um movimento de esquerda foi dirigido por um negro.São movimentos que surgem da classe média branca, de uma experiência exclusivamente branca. Não vi movimento marxista em lugar nenhum no mundo inteiro, desde a época de Marx para cá, que não tivesse problema com a negritude. Dizem que ela é um subproduto da luta de classe. A partir desse momento você já tem uma visão racista.

     

    RH: E quando o senhor começa a participar do movimento negro?

    CM: Entrei na militância quando tinha 16, 17 anos, e isso foi nos Estados Unidos, onde me aconteceu uma revelação do que tinha sido a história dos negros. Foi um momento bem efervescente, quando o movimento negro americano crescia e começou a lançar ações públicas para eliminar a segregação racial. Isso abriu meus olhos, até então não tinha nenhuma noção de mim como um negro realmente, inclusive queria fugir dessa situação.

     

    RH: Em 1961, quando retorna a Cuba, como estava o movimento negro no país?

    CM: Volto e me integro à luta revolucionaria, mas olho para o governo e vejo que são todos brancos. A população negra apoiou com todas as forças a revolução, e os dirigentes não viram a necessidade de integrá-la ao poder. E o movimento negro foi então sufocado, proibido, perseguido, acabando na clandestinidade. Eu me identifiquei quando ele estava sendo perseguido pelo regime, e aí, claro, passei a ser perseguido também e fui aprisionado duas vezes; em uma delas ia ser executado, por participar de protestos contra o racismo. Falavam que não havia racismo, somente uma sociedade cubana. Fidel dizia que a única cor que ia ser permitida era a cor cubana, e essa cor era a branca.

     

    RH: Não era nem uma cor mestiça?

    CM: A cor cubana é branca! Descendência espanhola! Se não alisassem o cabelo, as mulheres negras seriam perseguidas em Cuba. Eram antirrevolucionárias. E essa situação durou em Cuba até a chegada da Angela Davis, nos anos 1970, uma primeira comunista que impôs os cabelos. Foi quando Fidel falou: “Que parem aí!”. Mas isso depois de anos de repressão.

     

    RH: Mas Cuba também participou ativamente dos movimentos de libertação na África nos anos 1960 e 1970?

    CM: Lembre-se que nesse momento Cuba estava bloqueada, politicamente separada do resto do que se chama “América Latina”, um termo que não utilizo, coloco sempre entre aspas, porque não sou latino, populações da África e indígenas não são latinas, então chamar todo este continente assim é uma violência racial. Fidel Castro sempre falou que Cuba era um país latino-americano. E quando começaram as intervenções cubanas na África, ele fez um discurso: “Estamos intervindo porque somos um país africano-latino”. A partir daí começou a utilizar este termo. Mas os que estavam sendo enviados para a África eram majoritariamente negros. O Che Guevara foi lutar no Congo somente com negros, não havia brancos entre eles. Até hoje o governo cubano não explicou essa política de racialização das Forças Armadas. Muitos soldados que voltaram para Cuba se converteram naqueles que começaram a criar um novo movimento negro, de maneira clandestina.

     

    RH: E a recente aproximação entre Estados Unidos e Cuba?

    CM: É muito boa, porque abre a sociedade cubana, impede o regime de agir com a população negra como agia anteriormente. Mas tem a parte negativa: os brancos dos Estados Unidos, que são riquíssimos e têm um capital fabuloso, agora vão voltar para Cuba, investir e empoderar seus parentes. São parentes revolucionários brancos cubanos que vão ser empoderados por parentes brancos capitalistas dos Estados Unidos. É uma dinâmica muito embutida em toda a estrutura racial cubana.

     

    Principais livros:

    Marxismo e a questão racial: Karl Marx e Friederich Engels frente ao racismo e à escravidão. Belo Horizonte: Nandyala Editora, 2010.

    Pichón: Race and Revolution in Castro´s Cuba.Chicago: Lawrence Hill Books, 2008.

    A África que Incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro.Belo Horizonte: Nandyala Editora, 2008.

    Racismo e Sociedade: Novas bases epistemológicas para entender o racismo.Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

    African Presence in the Americas.Trenton, NJ: Africa World Press, 1995.

    Castro, the Blacks, and Africa.Los Angeles: CAAS/UCLA, 1989.

    Were Marx and Engels Racists? – The prolet-Aryan outlook of Marx and Engels.Chicago: IPE, 1972.