Carlos Ziller

Marcello Scarrone

  • (Foto: Felipe Varanda)Isolado do mundo e da sociedade, no silêncio dos arquivos. Se é assim que você imagina um intelectual, bom, este não é absolutamente o perfil de Carlos Ziller, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, alguém que lembra a você que “enquanto a gente está conversando aqui, há 150 mil pessoas vivendo sob estado de sítio no Rio de Janeiro, porque são pobres”. Os intelectuais, para ele, têm a obrigação de se colocar “de modo claro num debate público sobre os assuntos que são o bem comum dos brasileiros, discutindo os rumos do país, e não só porque temos uma eleição”.

    Formado em Física e com doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris-IV, Ziller deixou, há 10 anos atrás, o Museu de Astronomia, que ajudou a criar e no qual trabalhou por longo tempo como pesquisador, para se dedicar à investigação histórica. Não surpreende que valorize a interdisciplinaridade e questione a regulamentação da profissão de historiador. Também na escolha de seus personagens de estudo, ele traça o caminho da diversidade – astrônomos na Idade Moderna, letrados portugueses da época da Restauração.

    Na conversa com a equipe da Revista de História, Carlos Ziller compartilha inquietações como esta: “Na história, a ideia de cientificidade simplesmente não é” — afinal, estudamos mundos inexistentes. Filosofia de físico? Exatamente, mas sem perder de vista a sociedade que nos cerca, enquanto ela nos faz o favor de ainda existir. 

    Revista de HistóriaA história é uma ciência como as outras?

    Carlos Ziller– Não é, porque num estudo científico sobre o passado, o máximo que se pode fazer, em termos da ideia de fidelidade, é reproduzir a fonte, o documento antigo. Mas não podemos sequer dizer, por exemplo, que efetivamente saíram tantas caixas de açúcar do porto de Salvador em 1630, só porque alguém registrou isto: entre o fato de alguém registrar e as caixas saírem, a conversa é completamente diferente, nós sabemos disso, porque tem contrabando, tem um monte de coisas. Vamos imaginar que a gente consiga ter o ponto de vista de Deus diante do passado. Deus, aquele para o qual é tudo presente. Ainda assim, é Deus quem está falando, não é a caixa de açúcar. Quando escrevo sobre a batalha de Salvador, o que existe sobre aquilo é um conjunto (desculpe a expressão) de papel velho, papel velho rabiscado. Quando vejo aquilo como um papel velho rabiscado, não tem outro jeito a não ser reconhecer que alguém o escreveu com alguma intenção, e essa intenção também pode ser identificada no próprio texto. Alguém escreveu, outros escreveram sobre a mesma coisa, e nesse conjunto todo o que eu posso fazer é interpretar. Eu me formei em física há cerca de 30 anos, e uma das coisas que me fizeram abandonar esse campo de investigação foi um problema ligado à teoria do conhecimento, uma inquietação diante do meu estudo sobre a epistemologia do século XX. Saí da ciência exata, natural, agora trato da história, e na história a própria ideia de cientificidade simplesmente não é. No terreno da interpretação, a cientificidade não é. Entendo que muita gente – historiadores, mas também físicos, epistemólogos – não concordam, pensam diferente, não tem problema. É assim mesmo, é bom que seja assim, mas isso no íntimo coloca um problema sério em lidar com a noção de cientificidade para os estudos do passado.

    RH – Como esse problema se manifesta na prática?

    CZ – Na formação dos futuros historiadores, por exemplo. Achar que as pessoas têm que produzir seu trabalho de História nesse ou naquele padrão, têm que produzir em quantidade absurda, isto não nos faz mais conhecedores do nosso passado, e muito menos os melhores intérpretes desse passado.

    Nosso trabalho como historiadores é muito autoral. Não escrevemos artigos com dois, três, quatro, cinco outros historiadores, isso é raríssimo. Os livros, salvo os livros didáticos, são obra de um autor só, ou então uma coletânea, com uma série de autores, mas cada qual com seu artigo, seu texto. O trabalho de um físico, não: às vezes você tem mais autores do que parágrafos no texto, 50 autores, o laboratório inteiro.

    E tem um problema mais complicado: nós não temos o mundo como critério de verdade. Para os cientistas, os físicos, há um mundo que responde, um mundo fora do laboratório. Para o físico, o corpo vai cair, caiu, opa, beleza. Para a gente não tem isso, porque o corpo já caiu, então como é que vamos fazer? Já não temos o mundo. O mundo dos historiadores sumiu, e a gente estuda esse mundo que sumiu. Por exemplo, é verdade que Filipe IV tentou impor em toda a península ibérica as leis de Castela, as leis da monarquia? É verdade. Mas também é verdade que ele não conseguiu. Se você quiser contar só a primeira parte, vai ser verdade? Vai. E a segunda parte, que ele não conseguiu, outro vai contar. Também é verdade. E agora? O trabalho do primeiro vai ser de História? Sim. E também o trabalho do segundo. São verdadeiros? Sim. Da mesma maneira, hoje: é verdade que garotos quebravam os vidros por aí, nas manifestações do ano passado? Claro que é verdade. Mas também é verdade que a polícia começava batendo nos meninos. Mas meu microfone é pequenino, enquanto o microfone do outro, que está preocupado em dizer que o menino quebrou o vidro, tem o tamanho de um bonde.

    RH – Por que se interessou pela atuação dos letrados durante a Restauração Portuguesa?

    CZ – O estudo que eu faço é sobre a vida intelectual e cultural portuguesa daquele tempo, sobretudo acerca dos temas da moral e da política. Moral entendida como os costumes e os valores fundamentais, as discussões e os debates, a partir dos escritos que os portugueses deixaram sobre suas relações políticas e sociais. Naquela época, letrado era o profissional da Justiça, desde o jurisconsulto ao desembargador, ao advogado, ao juiz, mas também o meirinho, também o escrivão. Letrados não eram aqueles que sabiam ler. O número das pessoas que sabiam ler, e que liam, e que tinham livros de leitura em Portugal, era surpreendentemente elevado. Não se tratava de maneira nenhuma de um mar de analfabetos, com poucas exceções. Tratava-se de uma população em que talvez 40% soubessem ler. É população urbana, são artesãos, carpinteiros, pedreiros.

    Minha pesquisa se concentra nos escritores que deixaram textos impressos, em como tratavam da vida e do patrimônio que tinham em comum. Um conceito importantíssimo para caracterizar este tipo de personagem é o termo “repúblico” – para não usar o termo “intelectual”, em torno do qual houve toda uma discussão nos séculos XIX e XX. Os “repúblicos” eram aqueles que agiam na política, por seus escritos, em grande quantidade de impressos, livros, folhetos, livros pequenos – 16 páginas, 24 páginas, cartazes – mas muitos também manuscritos. Escreviam cartazes e colavam na parede, sobretudo na Praça do Comércio, que era uma espécie de ágora, ficavam lá discutindo, e lendo. Os repúblicos e o tipo de coisas que estavam defendendo nos ajudam a entender como a sociedade portuguesa se partia em termos da vida política, que não era nada concentrada em torno do rei, mas muito mais dinâmica do que a gente imagina.

    RH – Que posições os repúblicos tomavam diante do poder político?

    CZ – A gente tem uma tendência a imaginar que no passado os homens viveram as tensões que hoje podemos compreender. Não digo nem aquelas que vivemos hoje, digo aquelas que podemos compreender. Os repúblicos de Portugal eram escritores, alguns homens de governo, que entraram e saíram das funções de exercício do poder, de acordo com a evolução das tensões entre eles. Quando há o rompimento com Castela, há repúblicos que se agregam ao novo governo, apoiando D. João IV e exercendo o poder. Outros fazem campanhas contra os nobres ainda fiéis a Filipe IV. Para uns, é necessário reunir as forças portuguesas para enfrentar a monarquia católica, outros querem buscar aliança com a monarquia francesa ou a inglesa, outros ainda desejam fortalecer a sublevação da Catalunha. Estas alternativas eram discutidas entre eles.

    RH – A liberdade estava em debate?  

    CZ – Para Portugal, ser livre naquele tempo, como eles diziam no primeiro ano da reconquista, é completamente diferente daquilo que a gente entende hoje. A própria ideia de poder político era completamente diferente. É estapafúrdio pensar que havia uma dominação castelhana que os portugueses queriam botar para fora. Não era um ato de liberdade a pessoa publicar um panfleto contra um ministro que se suspeitava ser um espião de Castela, ou contra um ato do governo que desagradou, ou contra uma fuga de nobres portugueses que atravessaram a fronteira e foram para Castela para se juntar àquele que achavam que era o seu rei. Nem liberdade de imprensa existia, embora houvesse a possibilidade de escrever e imprimir.

    RH – Este estudo ajuda a pensar no papel atual dos intelectuais?  

    CZ – É claro que este tipo de estudo sobre aquela época, como tudo em história, nos fala sobre o tempo que vivemos agora, e sobre os intelectuais de hoje, não mais os “repúblicos”. Ele nos fala sobre nossa vida política, na qual uma intelectualidade se coloca de modo muito mais intenso no debate público do que fazia há 10 anos, há 20 anos. Discute os rumos do país e sobre assuntos que são o bem comum dos brasileiros, e não só porque temos uma eleição.

    Estamos vivendo no Brasil uma situação em que, quando ocorre alguma distribuição de renda, ela vem logo acompanhada de pleitos por direitos. Porque não basta você ter renda, é preciso direitos que assegurem que essa renda seja distribuída e possa se viabilizar em bem-estar. E aí a sociedade esbarra numa dificuldade monstruosa, de natureza moral. Nós, os chamados intelectuais, temos a obrigação de interpretar esse tipo de coisa e discutir isso abertamente. A multidão que esteve em junho do ano passado na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro foi por causa de quê, exatamente? O que estava em questão eram direitos, os direitos básicos da cidadania. Agora, enquanto a gente está conversando aqui, há 150 mil pessoas vivendo sob estado de sítio no Rio, porque são pobres. Eles não estão vivendo isso porque são pretos, homossexuais ou mulheres, não. É porque são pobres, e é estado de sítio decretado pelo governo federal, junto com o governo estadual. Estado de sítio quer dizer: os caras não têm direito. Nós sabemos que é assim, a polícia entra, tortura, mata, rouba, faz o diabo, sem levar em consideração que as pessoas nas quais está batendo, que está prendendo, matando têm direitos. Não dá. O intelectual está aqui para ver isso também. Temos que fazer o nosso papel, que é discutir esses assuntos, e acho que a intelectualidade do nosso século tem feito isso.

    RH – Como a filosofia entrou na sua formação?

    CZ – Além da minha inquietação com a discussão conceitual, outros fatores foram muito importantes para minha entrada na história. A existência de uma ditadura, a vida clandestina, eu me envolvi com esses fatos, embora não faça parte da geração que encarou os conflitos dos anos 60. Entrei para o Partido Comunista Brasileiro em 1976 e para a universidade em 1977, então sou da geração que praticamente derrotou a ditadura. A partir daí fui trabalhar num projeto de memória da Astronomia do Brasil, que o CNPq estava constituindo. Criamos o Museu de Astronomia e comecei a trabalhar lá como pesquisador. Fui fazer doutorado na França, na Universidade de Paris IV, e voltei cinco anos depois. O meu doutorado é em filosofia.

    RH – Tudo antes da história.

    CZ – Fiquei no Museu de Astronomia por 18 anos, desde a fundação. Mas, a partir de um determinado momento, a minha reflexão sobre história, sobre historiografia, sobre o passado me levou para longe dos assuntos relacionados àquela instituição. Precisava de algo que não enfocasse a história da ciência, da cultura científica, vim para o Departamento de História [da UFRJ] e estou aqui como professor há dez anos.

    RH – A universidade é indispensável para a produção de conhecimento histórico?

    CZ – Não, mas de jeito nenhum. Produção de conhecimento tem sempre onde tem gente interessada em conhecer uma coisa. Quando eu escrevo, o meu texto pode ser lido apenas pelos meus pares, pelos historiadores, o meu texto acadêmico. Mas não estou falando para eles, estou falando para a sociedade. O Brasil progressivamente está adotando um modelo de vida acadêmica universitária assemelhada àquilo que há na América do Norte: os historiadores como corpo técnico, quietos no canto deles, produzindo seus livros por eles mesmos, avaliando suas próprias pesquisas por eles mesmos, com conclusões que são deles por eles mesmos, e pronto. Eu prefiro outro tipo de modelo, mais europeu, mais português, mais francês, em que o intelectual é intelectual para a vida pública, está escrevendo neste tipo de revista e também em outro tipo de revista e jornal, como vários colegas meus estão fazendo. De maneira nenhuma eu posso adotar um ponto de vista que seja exclusivo, como se fazer história fosse exclusivo do pessoal da universidade.

    RH – A formação monodisciplinar é um problema?

    CZ – Bom, uma das consequências de a gente achar que a história tem seu caminho é esta: a gente inventa uma disciplina. Claro que tem que ter disciplina. Mas uma coisa é fazer isto, outra é disciplinar o estudo, ou seja, coordenar e montar segundo uma disciplina. Isto tem vantagens enormes, mas também desvantagens brutais. Por exemplo, minha trajetória me fez identificar de modo claro um conjunto significativo de astrônomos que agiram no Brasil nos séculos XVII e XVIII. Eram astrônomos importantes, reconhecidos pelos outros astrônomos daquele tempo. Facilitou-me o fato de ter tido formação em física para identificar como importantes esses personagens e o trabalho deles. Se eu não fosse físico, não saberia resolver isto. Mas o fato de ser físico não resolveu nada, pois os textos deles estão em latim. Se não souber latim, não adianta: a vida intelectual da história moderna é em latim. Para os jovens que estão hoje entrando no curso de história, se o sujeito acha que com o português e o inglês vai para a história antiga e vai resolver os problemas dele, está maluco. Este é um problema da disciplina, mas tem muitos outros.

    RH – Como a regulamentação da profissão de historiador?

    CZ – Isto também é algo extremamente complicado. Na estrutura de ensino fundamental e médio, o professor de história deve ser formado em história. Mas os que estão na universidade formando esses indivíduos, não. Se todos os da universidade devem ser formados em história, a gente perde essa hipótese de interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade não significa eu estudar um pouco de física para ver se consigo entender os astrônomos da idade moderna. Para entendê-los, tem que conhecer bem a geometria antiga, euclidiana, conhecer bem a teoria aristotélica do mundo natural, além de conhecer física.

    E, outra coisa: se alguém quiser escrever sobre história, pode? Claro que pode, inclusive as bobagens que alguns escrevem, não tem problema. É história? É. Agora, o que ele escreve vale? Quem decide isto não é o professor universitário, nem o de ensino médio, nem o de ensino fundamental, nem uma associação ou um conselho regional. Não é como os engenheiros e seus prédios. Se o prédio do engenheiro cai, a engenharia dele é uma merda. Também não é como a medicina, na qual a pessoa para ser médico deve furar os outros, e se não sabe furar os outros, tchau. História não é isso, nós não furamos ninguém, não construímos prédio nenhum, é preciso tentar entender isso e agir de uma maneira um pouco mais inteligente, para que a gente possa tirar partido de nossa diversidade, inclusive com a profissão de jornalista. Não fechando na disciplina, mas garantindo um espaço de trabalho para as pessoas, de maneira mais rica, que possa nos favorecer e não nos atrapalhar.

    RH – Os astrônomos que estudou também eram homens de múltiplas ciências?

    CZ – Essas divisões entre mundos é uma coisa nossa, é um tremendo anacronismo. Temos uma dificuldade enorme para entender como é que aquele padre olhava o céu com a luneta. Este era o fato mais normal do mundo. Copérnico era padre, [Isaac] Newton era uma coisa muito parecida com padre. Eu tive um professor na PUC, tenho muita admiração por ele, Paul Schweitzer, jesuíta e matemático. Um bom matemático, um excelente professor. Nós é que estamos dividindo, mas o mundo não é assim. Esses homens de religião, sim, são religiosos, sacerdotes, agora não vejo por que não podem fazer investigação científica. A religiosidade de que esses personagens são portadores não é só condenação moral de desvios, mas também afirmação de coisas importantes para nós no âmbito da moral pública. Para começo de conversa, a monogamia. Eu sei que o que o pessoal gosta não é da monogamia, mas independentemente disso nós somos monogâmicos. Não podemos só olhar para uma Igreja que condena o divórcio. Aliás, como o Papa que nós temos agora, daqui a pouco ninguém vai entrar mais nessa condenação.

    RH – E é um jesuíta.

    CZ – Eu sou um daqueles que ficaram entusiasmados quando este Papa foi eleito, e estou ficando cada vez mais surpreso: está fazendo coisas que nunca imaginei que um Papa jesuíta fosse capaz de fazer, está dissolvendo os vínculos da máfia no Vaticano. E isso não é brincadeira, não.