Carta do Editor

Rodrigo Elias

  • Palavras podem ser trágicas. Na história do Brasil, as mais trágicas foram aquelas que sustentaram por séculos a opressão a milhões de indivíduos despersonalizados, explorados, violentados. A escravidão, palavra mais trágica, trazia outras, que a sustentavam: servo, cativo, peça, castigo. As palavras, assim como hoje, matavam. 
     
    As mulheres e os homens cujas humanidades foram usurpadas na construção da sociedade colonial, entretanto, por vezes abriam espaço para sua existência no mundo social e, a duras penas, tomavam para si as palavras. A Conjuração Baiana de 1798 foi um desses momentos-chave. Trata-se de um conjunto complexo de eventos envoltos em brumas de incertezas, desconfianças e disputas. Como detalha o artigo de Patrícia Valim, interesses poderosos, brancos, contrários aos poderes transoceânicos jogaram com suas palavras papel importante nos planos de sublevação – “menos impostos”, “conservação”, “privilégios” – enquanto outros interesses, secularmente abafados, negros, foram à rua e escreveram no espaço público as suas palavras – “revolução”, “liberdade”, “igualdade”. 
     
    Tomadas de outros contextos, as palavras da gente preta e mulata eram articuladas sob a vigilância da gente branca, que tentava controlar os discursos escritos e as falas nos lugares onde havia interseção de gentes e da palavra escrita e falada, como indica o artigo de Marialva Barbosa. 
     
    A sentença de morte – palavra proferida pela gente branca – caiu sobre quatro homens negros. Disseram e escreveram palavras que lhes eram vedadas. Duzentos e dezesseis anos depois, foram-se o domínio português, a escravidão, a monarquia, três ditaduras republicanas. O direito à palavra, o acesso ao cultivo livre das letras e o poder de se fazer ouvir em público não vieram para gentes distantes do controle do Estado e das riquezas – em grande parte, ainda, gente preta. Nossa insistência na negação deste passo, como indica o artigo de Guilherme Pereira das Neves, é a nossa tragédia. 
     
    Boa leitura.
     
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