Figuras públicas, especialmente líderes políticos, tratam o futuro com uma solene devoção. Lapidam com esmero sua imagem diante do público porque suspeitam que o amanhã é caprichoso, capaz de arrasar sem piedade os equívocos, as fraquezas e as vacilações. Assim como enaltecer virtudes e conquistas.
Não resistem à precoce aventura de construir no presente a imagem que desejam ter no futuro com algumas armas potentes: biografias, arquivos, monumentos e fundações. Querem blindar o amanhã, mas mergulham em uma doce – e cara – ilusão.
Um dos personagens desenterrados sem descanso de nosso passado republicano, Getulio Vargas chega a esta edição para mostrar a imprevisibilidade dos caminhos da memória. O artigo de Marieta de Moraes Ferreira registra as diversas formas que assumiu a sua presença ao longo do último meio século.
Se esse personagem vive no terreno do mito, há realidades tangíveis assombrando os dias que correm ao redor do planeta. A alta dos preços dos alimentos e a redução das áreas de plantio para fins de subsistência têm motivado reações de massas populares, atropelando a linha tênue que as separam da fome extrema. Momento propício para lembrar episódios passados em que a desigualdade, a escravidão e a insensibilidade social empurravam turbas famélicas para a revolta. Os artigos de João José Reis, sobre os baianos contrários ao aumento do preço da farinha, de Frederico Neves, com a triste história dos retirantes da seca cearense no século XIX, e de Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira, que põe em cena a França pré-revolucionária, flagram ao mesmo tempo o desespero e a capacidade de luta popular por direitos elementares.
Não importa para que lado se olhe em busca de um sentido para o destino – se para o futuro ou para o passado. Como se mostra adiante, historiadores e cientistas sociais conhecem uma regra elementar: ainda que cada tempo tenha suas contingências, é preciso saber construir a própria grandeza. E a pedra mais sólida para isso é feita de dignidade e respeito.
Carta do Editor - Nº 35
Luciano Figueiredo