Carta do Editor - Nº 64

  • É impossível ficar indiferente à novidade que acompanha o início deste ano: pela primeira vez o país será governado por uma mulher escolhida pelos cidadãos.

    Não foi nada fácil chegar até aqui. Que o digam alguns dos autores que escrevem em nossas páginas. A professora Eni de Mesquita Samara, historiadora dedicada ao estudo do papel da mulher na formação da sociedade brasileira, deixa claro na entrevista que o modelo patriarcal de vida familiar não dominava o nosso passado. Afinal, a presença de mulheres chefiando domicílios era expressiva, e administrar bens e negócios não era tão estranho a elas como se imagina. Eni aposta: o cenário da dominação masculina está começando a mudar, pois não é o gênero que importa, mas a qualificação da pessoa.

    Quem soube disso há muito tempo foi uma cantora lírica brasileira que brilhou nos palcos do Rio de Janeiro e de Portugal. Não seria nada de mais se Joaquina Lapinha não vivesse em pleno século XVIII, mergulhada no mundo da escravidão. A incrível história dessa negra que lutou para ter seu talento reconhecido é contada no artigo de Paulo Castagna.

    A historiadora Mary Del Priore leva essa conversa mais adiante. O dossiê amoroso desta edição revela como a presença feminina invadiu pelas frestas até mesmo o governo dos reis. Envolvidos em relações matrimoniais protocolares, os soberanos cultivaram um séquito de amantes que decerto não conduziam apenas a vida afetiva de seus parceiros. Da incontinência amorosa dos reis, diz Fabiano Vilaça em seu artigo, brotam bastardos que embaralham os limites da família imperial.

    Essas leituras desenham a presença sinuosa das mulheres – participando e governando – em todas as esferas, sem se acomodarem em um mundo que parecia não ceder espaço àquelas que eram reconhecidas como inferiores. Aliás, um mundo que, a partir de 2011, é página virada desse longo folhetim.