Bingo, jogo do bicho, caça-níqueis. Enquanto a legalização e o controle dessas manias nacionais são hoje uma dor de cabeça, os jogos de baralho passam por inocente distração. Mas nem sempre foi assim.
Antes de repousarem serenas sobre as mesas, as cartas eram alvo da atenção das autoridades. O governo português, por exemplo, criou um severo sistema de tributação sobre elas. É o que mostra o Alvará que proíbe a saída de cartas de jogar do Brasil e outros domínios ultramarinos de Portugal, encontrado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.
A popularidade dos jogos de cartas vem de longe. Remete à própria invenção dos baralhos. As teorias sobre sua origem são diversas. Produzidos na Europa ou trazidos pelos árabes, chegaram àquele continente no final do século XIV e se espalharam pelo mundo, em diversas formas de disputa: pôquer, buraco, bridge e muitos outros jogos. A disseminação foi tão rápida que há registros quase simultâneos em países como Espanha, Itália, Alemanha e França.As primeiras cartas europeias tinham uma confecção que se assemelhava à de obras de arte. Eram feitas a partir de matrizes de madeira, utilizadas para “carimbar” as imagens sobre papel, numa técnica conhecida como xilogravura. Posteriormente, os baralhos passaram a ser produzidos por meio de gravuras, e sua qualidade e detalhamento aumentaram.
Cercadas de mitos e superstições, as cartas estavam presentes no cotidiano de todas as classes sociais. Acompanharam os acontecimentos ao longo do tempo, não deixando jamais de ter relação com a política: os Reis das cartas foram largamente associados a personagens históricos como Carlos Magno, Alexandre, o Grande e Júlio César. Com a Revolução Francesa, que derrubou a monarquia, Reis e Rainhas passaram a ser retratados sem cetros e coroas, e Damas e Valetes deram vez a figuras que representavam os ideais de liberdade e igualdade.Alguns anos depois de assumir o poder, Napoleão Bonaparte também encontrou tempo para dar pitaco nas cartas, aproveitando seu viés político. Como numa campanha de marketing, trouxe de volta os símbolos da realeza e estampou sua própria figura no Rei de Ouros, determinando que o desenho fosse adotado pelos baralhos de toda a França.
Em Portugal, elas já eram encontradas no final do século XV. Durante a União Ibérica (1580-1640), o Estado instituiu o monopólio da fabricação e comercialização das cartas no seu território e, mais tarde, nas possessões de além-mar. Em julho de 1769, foi fundada em Lisboa a Real Fábrica de Cartas de Jogar, a única a fabricar baralhos no reino. Logo depois, a fábrica foi associada à Impressão Régia, que se consagrou produtora das cartas portuguesas.
No Brasil, tudo indica que as primeiras impressões de cartas de baralho foram feitas na Bahia, onde já havia uma Fábrica de Cartas em 1770. Como o negócio era rentável, não demorou para que as falsificações começassem a pipocar. A Coroa portuguesa, por sua vez, tentava tomar medidas para combater a prática. Ordens vindas de Lisboa previam punições exemplares aos réus acusados do crime. As Ordenações Filipinas, um código de leis de 1603, estabelecia para os falsários a pena de degredo para a África.
Se ao redor do mundo muitos governantes criaram leis para proibir ou regular os jogos, por que não ganhar dinheiro em cima de uma prática que arrebanhava uma legião de adeptos? Não demorou para que a cobrança de impostos sobre a produção ou a circulação das “cartas de jogar” se tornasse uma importante fonte de recursos.
Foi o que fez a Coroa portuguesa quando aportou no Brasil, como mostra o Alvará que proíbe a saída de cartas de jogar..., de 1808. O governo anunciou que lançaria “mão de meios já conhecidos e de impostos” para “acudir às urgentes necessidades do Estado”. Os cofres públicos estavam em baixa devido à guerra contra os franceses e à transferência da Corte.
O imposto era cobrado diretamente do contratador, que pagava pelo direito (concessão do governo) de fabricar ou vender as cartas por período determinado. Mas só uma pessoa recebia a permissão para exercer a atividade. O Alvará registra o procedimento para decidir quem seria o felizardo: o governo ordenava “afixar editais nesta capital para concorrerem as pessoas que quiserem lançar, arrematando-se a quem oferecer maior quantia”. Imune às questões de sorte ou azar, o ganhador seria sempre o mesmo: a Coroa. Reis e Rainhas não estão nas cartas à toa...
Cartadas de mestre
Regina Helena Santiago