Cena íntima

Alessandra Vannucci

  • No dia 13 de janeiro de 1876, a atriz italiana Adelaide Ristori (1822-1906) desembarcou em Brindisi do vapor inglês em que viera do Egito. Naquele dia, a atriz concluía a maior turnê de sua carreira artística: em 20 meses percorrera 35.283 milhas marítimas e 8.365 milhas terrestres (cerca de 70 mil quilômetros, quase duas vezes a circunferência terrestre!) e pisara em 33 palcos de teatros em países tão exóticos quanto distantes entre si – do Teatro Lyrico Fluminense, no Rio de Janeiro, até o Royal Theatre, em Adelaide, na Austrália. Foram 304 representações sem jamais atrasar um minuto nem mudar nada do que fora anunciado ao público nos manifestos.

    Dali a poucos dias a atriz comemoraria seus 55 anos. Não era bonita, mas alta e aprumada: o olhar piedoso emoldurado pela cabeleira negra e a postura de estátua inspiravam o respeito devido a uma rainha. De fato, era nobre. Descendente de uma verdadeira dinastia nômade de atores, aos vinte anos havia noivado por amor com o marquês Giuliano Capranica del Grillo, contrariando as expectativas da linhagem do futuro marido com uma fuga romântica digna da pena da novelista francesa George Sand (1804-1876). Mas não era só essa a informação que constava na biografia impressa que era distribuída aos jornais e vendida nos teatros por onde passava. Ristori era apresentada como a grande atriz que dera poderoso impulso à regeneração da arte dramática italiana, resgatando-a de sua reputação de indecência e levando-a à consagração no mundo inteiro. Livre das estreitas fronteiras territoriais e dos condicionamentos morais, estéticos e econômicos do mercado peninsular, sua arte triunfara nas capitais européias – a começar por Paris, em 1855, quando eclipsou a grande tragedienne Mme. Raquel – e, finalmente, nas capitais das nações civilizadas do planeta. A “volta ao mundo” de 1874-75 foi inaugurada com pompa excepcional no Rio de Janeiro, inconteste capital cultural da América Latina.

    A idéia de atravessar o oceano para se apresentar no Novo Mundo – algo extremamente arrojado até para o tradicional nomadismo dos artistas italianos – estimulava o espírito empreendedor de Ristori desde o fim da década de 1850, com o estabelecimento de linhas de navegação a vapor entre os portos do Mediterrâneo e o Rio de Janeiro, garantindo melhores condições para a travessia e influindo positivamente no padrão civilizatório das metrópoles latino-americanas. Entretanto, as freqüentes epidemias de febre amarela que assolavam o Brasil, limitando uma possível temporada aos meses de inverno, e os fatos sanguinários da guerra do Paraguai, assustavam a artista, e as negociações, confiadas a agentes internacionais, encalhavam, adiando o projeto. Em 1868, em Nova York, Ristori fechou triunfalmente uma turnê de quase dois anos pelos Estados Unidos, antes impedida pela Guerra de Secessão. Do mesmo porto, dias mais tarde, Luigi Magi, um agente encarregado da companhia, zarpava rumo ao Rio de Janeiro, com a missão de verificar a viabilidade de uma turnê no ano seguinte.

    A capital brasileira pareceu a Magi maior e mais civilizada do que Havana: com mais ouro, comércio, luxo e estrangeiros. Perambulando pela Rua do Ouvidor, Magi teve a sensação de estar numa rua de Paris. Havia seis teatros ativos, entre os quais o São Pedro de Alcântara, que, apesar de bem localizado, era desaconselhável porque a segunda fila de camarotes era reservada para uso exclusivo e gratuito dos sócios-proprietários. Teatros menores, como o Alcazar, não eram de se levar em conta, porque neles dançava-se o cancã. Acabou assinando contrato com José Maria do Nascimento, empresário conhecido pelos agentes internacionais e administrador do Teatro Lyrico Fluminense, no Campo da Aclamação, atual Campo de Santana – um teatro muito amplo, com quatro fileiras de camarotes e mais de mil assentos na platéia, entre poltronas e bancos.

    Antes de embarcar em Lisboa, em 28 de maio de 1869, Ristori enviara a Magi o texto que desejava que fosse divulgado para os jornais e uma fotografia com dedicatória para o imperador Pedro II. Com ela e a família – os dois filhos e o marido – viajavam no navio Estremadura 31 pessoas, entre atores, atrizes, técnicos da companhia e comitiva pessoal, mais as caixas com o guarda-roupa, as decorações, as velas e tudo que seria preciso para montar um repertório com trinta peças.

  • No cais do Rio de Janeiro, na manhã do dia 19 de junho, a atriz foi recepcionada por uma delegação de notáveis da colônia italiana e pelo representante do governo da Itália no Rio. Pela primeira vez após a unificação italiana, uma artista de fama internacional, consagrada no mundo inteiro como embaixadora cultural do novo Estado, visitava a América Latina. 

    A estréia da temporada foi adiada por vários dias, pois o imperador havia viajado para inaugurar uma nova estação de trem fora da cidade. Finalmente, em 28 de junho, quando caiu o pano sobre a “Medéia” de Legouvé, Ristori foi cercada por artistas e estudantes, que invadiram o palco e se ajoelharam à sua volta para adorá-la, diante da platéia em delírio e de toda a família imperial aplaudindo de pé na tribuna. A bilheteria arrecadou 12 mil francos, cerca de dez vezes o valor máximo alcançado pela atriz na própria pátria. Estimuladas pelos elogios desenfreados de intelectuais influentes – como Machado de Assis e Gonçalves Dias –, as homenagens não pararam mais: uma noite, Ristori foi acolhida no teatro com fogos de artifício, banda e vôos de pássaros; noutra, o público lhe ofereceu, mediante subscrições, mimos valiosos, como um alfinete de ouro com um gigantesco topázio de 42 quilates e um leque de madrepérola no valor de 500 francos. Na noite em seu benefício, sob uma chuva de rosas, uma menina enfeitada com a bandeira italiana levou ao palco um diadema com rosas em ouro e brilhantes, como presente da colônia. Os requintados mimos com que a família imperial brindou a atriz ao longo da temporada de dois meses, com 42 apresentações, chegaram à fabulosa cifra de 60 mil francos, segundo jornais italianos.

    Excepcionalmente, o imperador chegou a oferecer-lhe uma soirée de gala, que ela recorda como “a noite mais esplêndida de toda a minha carreira”. Mas o grande privilégio foi a carta que D. Pedro enviou a Ristori em Buenos Aires, logo após a partida da atriz, para lembrar-lhe a promessa de uma nova visita à Corte, e inaugurando, num estilo destituído de qualquer cerimonial, a intensa e carinhosa correspondência que os manteria em contato por mais de vinte anos, até a morte do imperador, em 1891, em Paris. Di lei attaccatissimo (“seu apegadíssimo”) D. Pedro d’Alcantara, assinava simplesmente o imperador, num italiano ligeiramente afrancesado, recheando as cartas de citações literárias e palpites políticos, recordações de passeios, saudades e juras de eterna estima para “aquela que representa para mim a beleza artística, sob qualquer ponto de vista” (5/10/1886) e cujo “talento sempre correspondeu plenamente à minha paixão pelas belas artes” (10/1/1888).

    A saudade do Rio, pelo amor que ali recebera e o deleite proporcionado pela manifesta admiração de tão ilustre espectador, não abandonaria mais a atriz. “Provei uma pena intensa de ter que dizer adeus àquela terra que hospeda tantas almas poéticas e generosas e uma família real qual não se encontra nenhuma igual, mesmo na Europa”, escreveu meses mais tarde.

  • Entretanto, antes de a atriz que corria o mundo acumulando triunfos cumprir sua promessa de retornar ao Brasil, o imperador procuraria por sua paixão teatral na Itália. Em outubro de 1871, hospedado no Hotel Royal Danieli, em Veneza, D. Pedro remete a Ristori uma mensagem emocionada, na qual se declara um “sincero admirador”, que não julgará cumprido seu itinerário de viagem até “ter saboreado uma, ao menos uma, sua apresentação” (11/10/1871). Mas Ristori estava em Odessa, cumprindo uma longa turnê pela Rússia. O jeito foi marcar para o fim do ano um recital particular em Paris, na residência de Mme. Planat de la Faye, amiga da atriz e da condessa de Barral , a preceptora das princesas Isabel e Leopoldina.

    Dois anos mais tarde, finalmente veio o anúncio do retorno de Ristori ao Rio de Janeiro. O entusiasmo do imperador o leva a oferecer dicas de produção e de repertório: “Creio que Shakespeare faria ótimo sucesso, ao menos como novidade para a maioria. Não falo por mim, pois a senhora bem sabe de minha paixão para as obras-primas daquele gênio e que jamais poderei esquecer sua Lady Macbeth” (15/9/1873). Evidentemente, a famosa cena do sonambulismo – um cavalo de batalha que Ristori interpretara em inglês em Nova York e Londres, em 1872 – devia ter marcado mais um triunfo no recital de Paris, que o imperador evoca como “aquela noite inolvidável em casa de Mme. Planat” (25/10/1873).

    O próprio marquês Capranica, marido da Ristori, administrava a companhia, que até então se distinguia das demais somente pelo luxuoso séquito de camareiras. Para a empreitada de uma viagem de volta ao mundo, o marquês resolve modernizar a estrutura de produção vigente no mercado italiano e que se revelara elementar diante das dimensões americanas. Já desde a primeira turnê aos Estados Unidos, em 1866, ele incumbira agentes internacionais da divulgação antecipada da temporada, assessorando a mídia, fornecendo libretos bilíngües e até interferindo nas modas locais com o lançamento de lembranças assinadas pela diva. Desta vez, para evitar a proliferação de agentes – que se autonomeavam, atraídos pela boa rentabilidade do negócio –, o empresário encarrega o neto Giovannino Tessero de se antecipar à companhia para escolher teatros, contatar jornais e agentes locais, que ficariam encarregados das tarefas executivas . Os festejos, espontaneamente organizados para o desembarque em 1869, agora são garantidos pelo apoio oficial da comunidade italiana, que, em troca de ingressos e favores do marquês, trata de esquentar a campanha de assinaturas para as récitas e assim garantir o seu sucesso.

    A atriz embarca em Bordeaux – principal porto francês de saída dos navios com destino à América do Sul – acompanhada por 24 artistas e oito pessoas de comitiva, 200 peças de bagagem, 19 caixas de acessórios e cenários. Toda essa pompa traduz a dimensão do investimento para que a “rainha da cena” afirme a incomensurável distância que a separa da “mesquinharia das companhias mambembes”.  Também comprova a promessa, amplamente divulgada, de uma mise en scène “muito mais esplendorosa do que em 1869”. Um zelo extremo é dedicado à seleção do elenco de apoio, especialmente o feminino, pois “aqui no Rio – aponta Tessero – o que querem é aparência” (5/11/1873). O grande número de figurinos, desenhados pela atriz com suas modistas parisienses, sugere um ritmo de desfile, com as freqüentes trocas feitas pela protagonista. A exigência feita ao teatro, para que as portas fossem “todas praticáveis”, permite entradas e saídas realistas – novidade que surpreenderia o público acostumado aos telões pintados, como os que a companhia adotara em 1869.

  • A viagem havia sido financiada por um grande empréstimo dos banqueiros Rothschild e La Grua, garantidos por hipotecas sobre bens da família. A estrutura, entretanto, estava longe de ser sólida: o agente local desaparecera sem dar conta das tarefas assumidas, e foi necessário contratar às pressas um novo agente para cuidar pelo menos da divulgação e da venda de assinaturas. A companhia teve que antecipar em uma semana a data da partida, fato que, como a atriz confia ao imperador, se por um lado lhe causa “imenso prazer – por razões que Vossa Majestade facilmente adivinha –, pelo lado dos negócios incomoda não pouco” (19/4/1874).

    Aportando no Rio de Janeiro em fins de maio, Ristori se instala num palacete na ponte do Catete, “longe do centro e perto das montanhas, para respirar um ar mais puro”. O luxo custa 400 francos diários, “um preço fabuloso como qualquer coisa nesta cidade, se é pra ficar numa boa situação”– registra um dos atores da companhia, Marco Piazza, alojado na Pensão Universo, dirigida por uma família italiana, ao custo de “15 ou 10 francos por dia”.

    Os relatos dos acompanhantes revelam a conjuntura inflacionária da corte. Nos borderôs da companhia, os valores relativos ao ordenado da orquestra, ao gás da iluminação e ao aluguel do teatro são bem mais altos do que em 1869 – mesmo considerando que já então a companhia havia trazido da Itália as velas para iluminação da cena e várias pipas de vinho, pois estes produtos custavam uma fortuna no Rio.

    Dessa vez, a temporada é instigada pela concorrência de Tommaso Salvini e Giacinta Pezzana, dois atores mais jovens, já consagrados na Itália e lançados à conquista de fama internacional. As récitas da assinatura da Ristori são vendidas por preços bem mais altos que as de Tommaso Salvini. Mesmo assim, a temporada esgota com receita fabulosa:102.500 francos de ouro só no Rio de Janeiro, em doze sessões, das quais duas em benefício da atriz: três vezes a receita de 1869, sem contar os mimos recebidos dos fãs. O privilégio da fama enaltece o orgulho patriótico do jovem ator Piazza: “O teatro está sempre cheio, com ingressos de 5 para 15.000 réis. Todas as noites o Imperador, acompanhado pela Imperatriz e pela Corte completa, vem assistir ao espetáculo. Ontem, que foi o benefício da Ristori, deu-lhe uma cruz cravejada de brilhantes! Nossa grande atriz foi chamada mais de dez vezes; na derradeira, um senhor levantou e declamou um poema para ela. Que comoção ao sair do teatro! O público inteiro esperando lá fora para despedir-se e gritar mais um viva! enquanto ela passava no coche.” O prestígio da rainha da cena parece inabalável e se estende ao séquito. Não era só ela; seus parentes e acompanhantes também gozam de amplo acesso à “afabilidade real”. Um deles, o general Galletti, se gaba de ter conversado, em audiência particular com o imperador, sobre as vantagens do regime monárquico para a Itália recém-unificada.

  • A paixão teatral do imperador é tão genuína quanto sua paixão política, e seus palpites revelam um espectador atento às tendências da cena internacional. Mesmo assim, a atriz não parece acolher suas sugestões e corre o risco de ser apontada como rainha… da velha cena. Ela apresenta sua conhecida galeria de nobres heroínas, sublimes e trágicas, num repertório quase igual ao de 1869 (“Giuditta”, “Elisabetta d’Inghilterra”, “Medea”, “Maria Stuarda”, “Maria Antonietta”, “Renata di Francia”, com um só título novo – “Lucrezia Borgia”, de Victor Hugo). Apesar disso, Ristori continua gozando da predileção do imperador. As críticas, no entanto, mostram que é Salvini – especialmente em Otelo e Hamlet – quem suscita as mais incontidas reações da platéia. É ele, e não Ristori, quem consagra o gênio de Shakespeare na América Latina, depurado das adaptações utilizadas por João Caetano e interpretado com uma potência emotiva, mediterrânea, “antes desconhecida aos palcos brasileiros” – segundo Joaquim Nabuco. Por sua vez, Giacinta Pezzana,  que antecede Ristori no Rio em um mês, com as mesmas peças, mas com ingressos bem mais baratos, é alvo de comparações elogiosas. De volta à Itália, goza da consagração latino-americana, ocupando o trono na ausência da “rainha”. Será ela quem, seis anos mais tarde, pisará nos palcos brasileiros como Amleto, en travesti (Hamlet interpretado por uma mulher). Ristori, como Salvini, não retornará ao Brasil.

    Ao longo das duas décadas em que o século se esgota, a concorrência para a partilha dos palcos latino-americanos torna-se mais acirrada. O grande trânsito de artistas estrangeiros, entre conjuntos de ópera, opereta, revista, melodrama e teatro dramático, entrincheira os arrendatários dos teatros atrás de intensíssimas grades de programação e inalteráveis exigências contratuais. O oceano que já não separa as duas margens do mercado teatral, contudo, “não devia existir para os amigos”, como (em 3/8/1879) escreve o imperador para a “rainha” que, aos seus olhos, não conhece nem jamais conhecerá  rivais.

    Alessandra Vannucci é doutora em Letras pela PUC-Rio e autora de “O Imperador e a rainha da cena”, O Percevejo, ano 12, nº 13, 2004, e organizou o livro Uma amizade revelada. Correspondência entre o Imperador d. Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo. Rio de Janeiro: Ed. Biblioteca Nacional, 2005.