Robinson Crusoé passou sufoco, mas, depois de padecer por 27 anos em uma ilha deserta, teve um final feliz: havia garantido um bom pé de meia, graças à produção de sua fazenda no Brasil. Autor desse clássico da literatura de aventura escrito em 1719, Daniel Defoe refletia a visão que os ingleses tinham da América do Sul: um lugar de perigos, mas também fonte de riqueza, que, no caso de Crusoé, podia ser usufruída mesmo à distância.
A partir do século XIX, com a vinda da família real e a consequente abertura dos portos, o Brasil se tornaria um destino atraente para muitos viajantes. Os ingleses estavam presos havia séculos a um sistema de classe que só valorizava aqueles que viviam de renda. Como eram poucas as chances de ascensão social em solo britânico, muitos comerciantes e empresários tentavam a sorte em terras tropicais. E não só eles: sucessivas levas de migrantes eram formadas pelos mais variados tipos. De condenados ao degredo por furto ou roubo a nascidos em berço de ouro, mas sem direito a herança. De filhos de comerciantes, que se rebelavam contra o destino de estudar Direito ou Medicina, aos infelizes no amor. Pobres, mas cultos, que procuravam construir fortuna para se casar. Caixeiros, agricultores, engenheiros, naturalistas, artistas ou fotógrafos. Motivos não faltavam para despertar o desejo de “dar a volta ao mundo”.
O fenômeno foi retratado na literatura inglesa, que está repleta de histórias de viajantes e de imagens do Novo Mundo, mais especificamente do Brasil, como destino dos irrequietos e empreendedores. No romance Tess of the D’Urbervilles (1891), o autor, Thomas Hardy (1840-1928), escolhe o país como refúgio de Angel Clare. O personagem resolve deixar a Inglaterra quando descobre que sua esposa, Tess, fora violentada. Caminhando pelas ruas de uma pequena cidade, depara-se com um cartaz que exalta o Império do Brasil como terra promissora para a agricultura. “O Brasil, de certo modo, atraiu Clare como uma ideia nova. Tess poderia mais tarde ir para lá, juntar-se a ele, e talvez naquele país de cenas, noções e hábitos contrastantes, as convenções sociais não fossem tão rígidas de modo a tornar-lhe impraticável a vida com Tess”, narra o autor.Angel Clare supera o preconceito dos pais evangélicos e parte para aquela terra “papista” (católica) cheio de esperança. Mas o sonho de enriquecer e esquecer seu drama fracassa diante do ambiente hostil. O incauto emigrante contrai febre amarela e “febre intermitente” (malária). As cartas de Tess chegam até os confins do país e o chamam de volta à Inglaterra, mais morto do que vivo: “Podia ver-se o esqueleto por trás do homem, e quase o espectro por trás do esqueleto. (...) As órbitas afundadas tinham uma tonalidade mórbida e a luz dos olhos tinha sumido. As cavidades angulosas e as rugas de seus antepassados tinham assumido seu reino no rosto dele, vinte anos antes de seu tempo”.
Sherlock Holmes também se viu às voltas com aventuras do gênero. Criado por Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), o célebre detetive acompanhou, na virada do século XX, casos de ingleses e norte-americanos que não somente enriqueceram como se casaram no estrangeiro. Os enlaces com mulheres tropicais às vezes eram sinônimo de perigo. Foi o que ocorreu com o senador norte-americano Neil Gibson no conto “O problema da ponte de Thor” (1927). Ele rodava o país em busca de riqueza – mais tarde ganharia até o apelido de “Rei do Ouro” – quando conheceu em Manaus a Sra. Maria Pinto. A brasileira é descrita como “uma criatura dos trópicos (...) Filha do sol e da paixão”, que o amou “como este tipo de mulher sabe amar”. O problema é que, “quando seus atrativos físicos – e dizem que já foram consideráveis – se esvaneceram, não havia mais nada que o prendesse a ela”. Sherlock é chamado à cena quando a esposa do senador aparece morta em circunstâncias misteriosas. A principal suspeita é a jovem e bela governanta do casal, Srta. Dunbar: uma rosa inglesa, flor da castidade e da espiritualidade. No fim, o detetive conclui que a Sra. Maria Pinto de Gibson havia planejado a própria morte, por ciúmes. Seu desejo era incriminar a inocente Srta. Dunbar.
O conto de Conan Doyle reflete o pensamento de um inglês anônimo que em 1873 escreveu um livro intitulado A colonização brasileira, de um ponto de vista europeu, sob o pseudônimo de “Jacaré Assu”. Segundo o autor, a mistura com outras raças “só pode resultar numa prole de ingleses crioulos ou até ‘vira-latas’, exemplos depauperados da insensatez dos seus progenitores”.
Enquanto a literatura investia no caráter ambíguo do mundo tropical – sedução e mistério, riscos e fortuna –, havia gente interessada em mostrar apenas o lado paradisíaco do Brasil. Para as empresas de navegação e outras que exploravam a “indústria da emigração”, fazia parte do negócio minimizar os perigos e realçar as boas oportunidades. Alguns escritos funcionavam como verdadeiros panfletos publicitários do país, como a brochura O Brasil como destino de emigração, sua geografia, clima, capacidade agropecuária e as facilidades oferecidas aos colonos permanentes, escrita por Charles Dunlop em 1866.
Pretensamente informativa, a publicação já começa descrevendo a exuberante natureza do Brasil (“um dos mais magníficos de todos os Impérios”) e valorizando grandes aventuras e descobertas – a chegada de Cabral, a exploração do Rio Amazonas por Francisco Orellana e a lenda do Eldorado, também na Amazônia. A intenção do autor é clara: despertar o inconsciente coletivo dos ingleses, alimentado pelos romances e relatos de viajantes. Sem prometer nada, tenta seduzir o leitor com o sonho de riquezas inimagináveis logo nas primeiras páginas.
Outra artimanha utilizada por Dunlop é a omissão. Lançado apenas seis anos depois que uma epidemia de febre amarela havia matado milhares de pessoas no Nordeste do Brasil, entre elas centenas de ingleses, o texto qualifica a doença como “ocasional”, presente em “algumas partes” do Brasil e causada pela inexistência de saneamento básico – situação comparável, segundo o autor, à da cidade de Nova York.
O folheto descreve ainda as colônias já estabelecidas no país, com destaque para as vantagens e comodidades oferecidas aos imigrantes. No caso de o leitor ficar seduzido, os anunciantes adiantavam o serviço: entremeando o texto, há propagandas de três empresas de navegação (com detalhes sobre preços de passagens e condições do transporte), agentes imobiliários e de emigração na América do Sul, jornais que acompanhavam as últimas notícias sobre as colônias, uma empresa que fornecia produtos essenciais para longas viagens de navio e até uma espécie de boticário que oferecia, entre outros remédios, os Cockle’s antibilious pills – comprimidos para o fígado, eficazes contra enjoo no mar.
Havia várias maneiras de se sair da Inglaterra em busca de uma vida melhor no Brasil, geralmente pelos portos de Liverpool e Southampton, em paquetes britânicos e franceses que aportavam todo mês em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro. Opção mais econômica eram os vapores que faziam a rota entre Liverpool e portos menos importantes, como os do “Para, Maranham e Ceará”.
Verossímeis ou não, contos, romances, relatos, estudos, jornais e peças de propaganda incentivaram muitos britânicos a tentar a sorte no Brasil. Pareciam seguir os passos descritos por Robinson Crusoé um século antes: “... subir na vida através dos empreendimentos era, de um lado, o caminho de Homens de Destinos Desesperados ou, de outro lado, Homens de Aspirações e Destinos Superiores, que se tornam famosos pelas suas Realizações descomunais”.
Alguns ficariam aqui por toda a vida. Ignorando os conselhos antimiscigenação de “Jacaré Assu”, casaram, tiveram filhos e netos. Como resultado, há numerosos descendentes de britânicos em todos os portos abertos para os países amigos em 1808. Buckingham, Hughes, Marback, Patterson, Wilson são hoje sobrenomes genuinamente brasileiros.
Sabrina Gledhill é pesquisadora da Fundação Pedro Calmon – Centro de Memória e Arquivo Público da Bahia e autora da dissertação Afro-Brazilian Studies before 1930: Nineteenth-century racial attitudes and the work of five scholars (Universidade da Califórnia, 1986).
Saiba Mais - Bibliografia:
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973.
DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes: Edição Definitiva – Comentada e Ilustrada. São Paulo: Editora Jorge Zahar, 2007. Vols 1 e 2.
Saiba Mais - Filmes:
“Tess”, de Roman Polanski (Inglaterra/França, 1979).
“O Morro dos Ventos Uivantes”, de William Wyler (Estados Unidos,1939).
“Mestre dos Mares – O lado mais distante do mundo”, de Peter Weir (Estados Unidos, 2003).
Chá na selva
Sabrina Gledhill