Charuteiras baianas

Juliana Barreto Farias

  • Durante o horário de trabalho, era proibido comer e fumar dentro das fábricas do Recôncavo Baiano. Mas as charuteiras da Suerdieck sempre davam um jeitinho de tomar um café ou arranjar um lanche. Certo dia, uma delas anunciou: “Hoje não tem merenda boa. Tem jiló até babar”. E dividiu o prato com todo mundo. Só Dalva Daminiana dos Santos não quis. “Eu não tinha deixado nada em casa para os meninos. De que adiantava eu merendar e meus filhos sem comer? Mas aí eu disse: ‘Dê cá, que amargura bastante é o que eu passo’. Tomei um pedacinho, peguei a mastigar. Nessa volta, tirei um samba”.

    E foi assim, há mais de cinquenta anos, que nasceu o Samba de roda de Dona Dalva, ou Samba da Suerdieck. Dos ensaios no salão da fábrica, com direito a orquestra e operárias “vestidas de baiana”, o grupo de charuteiras passou a se apresentar em festas, e até hoje continua animando as quartas-feiras na cidade de Cachoeira.

    Aos 83 anos, Dona Dalva, como é mais conhecida, ainda entoa com muita afinação o “samba do jiló”. E relembra, com certa nostalgia, os tempos difíceis em que passava horas enrolando folhas de fumo. Como tantas mulheres do Recôncavo, ela aprendeu o ofício ainda menina, e durante trinta anos dividiu-se entre a fábrica e os cuidados com a casa e os cinco filhos. Hoje, as mulheres ainda estão à frente da confecção artesanal dos “puros baianos”. Mas a produção já não é mais a mesma.

    Desde o período colonial, o fumo se destaca nessa região da Bahia. Por volta da segunda década do século XVII, pequenos agricultores iniciaram as primeiras plantações. O solo argiloso, rico em húmus, e o costume de se fertilizar a terra com esterco de gado garantiam uma composição bem propícia à lavoura fumageira. Nos primeiros tempos, ela esteve muito associada às negociações do tráfico transatlântico de escravos. Pouco a pouco, novas áreas de plantio foram ocupando quase todo o chamado Recôncavo Sul, incluindo as atuais cidades de Maragojipe, Cachoeira, São Félix, Muritiba e Santo Antônio de Jesus.

    “A partir de então, criou-se uma espécie de tradição em torno dessa atividade e um tecido social diferenciado. Nos últimos anos do século XIX, a lavoura do fumo constituía o principal artigo de exportação da Bahia. E, ao raiar do século XX, o Recôncavo era o maior fornecedor de fumo e derivados de todo o estado”, assinala a historiadora Elizabete Rodrigues da Silva, autora de uma dissertação sobre as charuteiras da região e professora da Faculdade Maria Milza, na cidade de Cruz das Almas.

    Não por acaso, as primeiras fábricas de charutos finos começaram a se instalar ali já nos anos 1870. E nas décadas seguintes a produção se intensificou ainda mais.  Além do aumento do consumo mundial e da expansão do mercado interno, aquela zona baiana era farta em matéria-prima e tinha muita gente disponível para trabalhar.

    Boa parte dessas manufaturas ficava nas próprias residências e quase sempre envolvia a família toda. E muitas vezes contavam com compradores certos, até mesmo nas fábricas. Na antiga Vila de Cabeças, hoje cidade de Governador Mangabeira, Elizabete Rodrigues da Silva via diariamente sua mãe fazendo charutos para ajudar no orçamento da família. Durante mais de quarenta anos, Benedita Rodrigues da Silva, falecida em 2009, saía da Vila e caminhava até os armazéns de tabaco de Cachoeira e Muritiba. “Ali, vendia parte de sua produção; a outra metade oferecia a compradores, chamados de atravessadores ou intermediários, que mantinham uma freguesia semanal com as charuteiras”, completa a historiadora.

    Feitos com fumo de qualidade inferior, esses produtos caseiros eram conhecidos como “charutos de balaio” ou “de regalia”. Nem sempre tinham o melhor acabamento, o que também comprometia sua qualidade e os diferenciava daqueles confeccionados nas fábricas. Para produzi-los, algumas mulheres costumavam usar uma tábua sobre as pernas e uma goma preparada com amido de milho. “Daí Jorge Amado dizer, em duplo sentido, que o charuto era feito nas coxas”, revela o historiador cachoeirano Luiz Cláudio Nascimento. Era uma técnica que parecia ser adotada somente dentro das residências. “Não encontrei, na documentação das firmas, referências a essa prática. Algumas mulheres que entrevistei diziam que abriam o fumo nas pernas, mas só mesmo em casa”, afirma Elizabete da Silva.

    Nas grandes indústrias da região, a produção era bem diferente. Embora elas também pertencessem a grupos familiares, seus fundadores e os parentes mais próximos só se ocupavam da administração e das relações comerciais. A principal atividade – a confecção do charuto – era quase inteiramente realizada pelas mulheres do Recôncavo. Elas chegavam a representar 70% da mão de obra dessas unidades fabris.

    Para a pesquisadora Elizabete Rodrigues da Silva, essa preferência foi influenciada pelo “estereótipo da docilidade” e da “natural” delicadeza feminina, considerados essenciais para a fabricação do charuto. Na década de 1950, o diretor da Suerdieck, Geraldo Meyer Suerdieck, dizia que “as mulheres eram mais cuidadosas, seletivas e perfeccionistas. Ao contrário dos homens, elas trabalhavam com mais amor e maior dedicação”.

    Mais do que uma vocação natural, essa opção também pode ser explicada pelo grande número de trabalhadoras na região. Nas primeiras décadas do século XX, quando muitos estrangeiros começaram a abrir suas fábricas no Recôncavo Baiano, a mão de obra feminina era bem mais numerosa e barata que a masculina. “Nesse momento, os industriais perceberam que essas mulheres, a exemplo do que já ocorria na Alemanha, eram as mais capacitadas para o desenvolvimento do trabalho”, conclui Elizabete.

     

    Hoje, na Companhia Brasileira de Charutos Dannemann, em São Félix, as mulheres continuam dominando a feitura dos “puros baianos”. Fundada por Gerard Dannemann em 1873, a fábrica chegou a reunir mais de três mil operários nos anos 1950. Agora, comandada pelo grupo suíço Burger, conta com cerca de quinze charuteiras, providencialmente trajadas de baianas. Instaladas num amplo salão nos fundos do centro cultural mantido pela empresa, elas enrolam folhas de tabaco, colocam capas nos charutos e bitolam seus anéis, enquanto turistas europeus e brasileiros tiram fotografias e lhes fazem perguntas. Em meio a risos e cochichos, volta e meia alguma acende um charuto.

    Rita de Jesus, a mais antiga, até já se aposentou, mas decidiu continuar ali. Na banca ao lado fica sua irmã Jucélia, que tira o papel dos charutos e prepara os bicos. As duas convivem com o fumo desde a infância: a mãe trabalhava na preparação do produto nos armazéns. Mais à frente, Cristiane Conceição, de 34 anos de idade e há onze exercendo o oficio, conta que a bisavó, a avó e a mãe faziam a mesma coisa. Aliás, o ofício parece mesmo uma tradição familiar feminina no Recôncavo. De outra geração, Dona Dalva acompanhava de perto a mãe, também charuteira da Dannemann. “Quando ela chegava de noite, ia fazer aviamento para ganhar uns trocadinhos. Eu pegava o charuto dela e queria imitar, ver se o meu estava certo”, conta.

    Atualmente, nem as meninas mais jovens querem aprender a enrolar e capear as folhas de tabaco nem a produção continua como antes. Nos anos 1940, o parque fabril formado pelas principais cidades do Recôncavo chegava a produzir mais de 200 milhões de charutos por ano. Agora, o estado sequer atinge dez milhões de unidades. Embora o fumo baiano ainda seja considerado um dos melhores do mundo para os charutos, a venda do produto para o exterior é pequena e não se compara às exportações feitas pela República Dominicana e por Honduras, primeiros no ranking mundial.  Em 2009, segundo o Anuário Brasileiro do Tabaco, 726 mil charutos foram destinados ao mercado externo e cerca de dois milhões ficaram no próprio país. Para os empresários, essa crise está ligada à política fiscal do governo brasileiro e também às campanhas antifumo.

    E se está cada dia mais difícil degustarum “puro baiano”, os moradores e visitantes de Cachoeira ainda correm o risco de ficar privados de mais uma instituição que nasceu naqueles tempos áureos do fumo. Até fevereiro deste ano, o aluguel da casa de samba de Dona Dalva era pago pelo padre Sebastião Heber, que sempre incentivou o funcionamento do local. Com seu falecimento, Dona Dalva vem tirando os R$ 400,00 de sua própria aposentadoria (um salário-mínimo). “Em junho, vamos lançar um CD e também preparar novas músicas. Para ver se a gente consegue a nossa sede. A moça com o pedacinho do jiló não me contagiou? Eu tirei logo uma chula e ela ficou satisfeita. O samba é a minha vida”, afirma, sem perder a determinação e a delicadeza.