Cheiro de talco

Rafaella Bettamio

  • Diferente dos conhecidos álbuns para o registro de informações sobre os recém-nascidos, Nosso Bebê tinha ares aristocráticos.O nascimento, o primeiro banho, as primeiras palavras e os primeiros passos são momentos da vida de um indivíduo que costumam ser muito bem registrados pelas famílias. Mas seria este um hábito recente? O álbum Nosso Bebê, encontrado no acervo de Iconografia da Biblioteca Nacional em sua segunda edição, de 1925, mostra que esse costume não é nada novo.

    Impressa pela Editora Monteiro Lobato, a publicação é colorida e ilustrada pelo desenhista e caricaturista Benedito Bastos Barreto (1896-1947), mais conhecido por seu pseudônimo, Belmonte. Famoso por seus desenhos para as personagens infantis de Monteiro Lobato (1882-1948), pela criação de Juca Pato e por suas charges no jornal Folha da Manhã, Belmonte traça, em Nosso Bebê, as primeiras cenas da vida de uma criança amada e bem cuidada.

    Já na década de 1920, o álbum de recordações da infância certamente tinha lugar cativo nas casas das classes mais altas da sociedade. Isso pode ser deduzido pelo intervalo de apenas um ano entre as duas primeiras edições e pelas lacunas que deveriam ser completadas pela mãe alfabetizada.

    As 89 páginas de Nosso Bebê apresentam muitas semelhanças com os álbuns atuais. As primeiras, assim como as de hoje, são dedicadas ao registro da infância, com espaço para o preenchimento dos nomes do bebê, dos pais e dos avós, fotos, datas comemorativas, os primeiros apelidos, o batismo... Mas é clara a preocupação com a tradição da família, valorizando a genealogia, hoje suavizada nas publicações do gênero. Há, no álbum, espaço para anotar a data do matrimônio dos pais, enfatizando que eles deveriam ser obrigatoriamente casados para ter filhos. Muito diferente da nossa realidade atual... Os bens materiais e o status social da família também ganhavam destaque, como mostram os seguintes trechos: “Enxoval: o bebê, ao nascer, já possuía...”, “Batismo: recebeu, por motivo de seu batismo, os seguintes presentes...”, ou mesmo o “Patrimônio: o bebê tem direito aos seguintes bens: ...”.

    O álbum também mostra certa preocupação das autoridades com o registro das crianças. No rodapé da página 21, por exemplo, ao tratar dos dados civis, há uma nota ameaçadora: “O pai que não registrar seu filho até o terceiro dia após o seu nascimento incorrerá nas penas da lei”.

    Dados como a altura e o peso do bebê deveriam ser informados a cada mês, em uma tabela. Do lado esquerdo das anotações, há a altura certa e o peso exato, considerados “normais” para cada idade. De acordo com essa tabela, os bebês deveriam ter 0,5m e 3,150kg ao nascerem. Se a altura e o peso fossem diferentes, fica a dúvida: seriam julgados “anormais”?

    Nosso Bebê também prova que a imunização já se firmava como hábito para parte da população 21 anos após a Revolta da Vacina – reação da população do Rio de Janeiro à campanha de vacinação obrigatória de 1904. Apesar de não ser especificada por tipo e idade correspondente, como ocorre nas publicações atuais, a primeira vacinação já merecia uma página do álbum. A data, a assinatura e o nome do médico deveriam ser preenchidos. Uma observação em forma de conselho chama atenção: “Convém vacinar o bebê após o seu 1º mês de idade”.

    No fim, o álbum traz informações e dicas sobre temas variados, como “ablactação” – mais conhecida como desmame –, esterilização do leite e higiene infantil. Na seção “Alguns conselhos”, as mães podiam encontrar dicas sobre pontos importantes da vida e da educação dos filhos. Em tempo de palmatória nas salas de aula, esses conselhos ressaltavam a vigilância, sem esquecer o respeito às crianças: “castigar as diabruras, porém com muito carinho, com conselhos ternos (...) O medo, as pancadas e os nomes feios jamais conseguiram corrigi-las. Sopeam [contêm] por instantes a travessura, mas, animosamente, favorecem a reincidência, inutilizando a criança”.

    A tradição do álbum de infância permanece por gerações: os bebês crescem e se desenvolvem enquanto vão sendo documentados por seus pais. Assim, os adultos lembram, são lembrados e adquirem, além de uma memória, uma ideia de individualidade.