Chocolate amargo

Fabiano Vilaça

  • "The morning chocolate", óleo de Pietro Longhi, do século XVIII. Por trás do sabor da bebida também usada no tratamento de doenças, estava a arte dos mestres chocolateiros.Quem disse que o chocolate adoça a vida? Está aí o caso de Bento José da Fonseca para mostrar o contrário. Ele foi enforcado e esquartejado no Porto com mais três comparsas, em 1829, todos acusados de serem salteadores e arrombadores de casas. O ofício de Bento: chocolateiro.

    Eram outros tempos, em que havia até quem elegesse o chocolate como única alternativa de sobrevivência. Mas, nada de espanto! Não se trata de alguém que desejou se alimentar somente do acepipe. O caso aconteceu em Portugal, nos idos de 1812, e está registrado em um Requerimento encaminhado ao [Ministério do Império] por João Salerno da Cruz, jovem de 18 anos, soldado e atirador do 2º Batalhão da Cidade de Lisboa. Localizado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, o documento é um pedido de Salerno ao príncipe D. João, então no Rio de Janeiro, para que pudesse exercer o “ofício de chicolateiro [sic]”. Para isso, precisava da “carta de exame” dos juízes do ofício, uma espécie de atestado de aptidão concedido após uma avaliação feita por outros artesãos.

    Mas havia um problema: João Salerno da Cruz não tinha acabado “a sua aprendizagem” na loja de mestre André Durão, em Lisboa. Isto porque, fazendo jus ao nome, o mestre chocolateiro não permitiu que o aprendiz continuasse a freqüentar as aulas quando soube que ele havia sentado praça no Batalhão de Caçadores. Com isso, Salerno ficou ainda impedido de trabalhar como chocolateiro em qualquer outra loja. Sem a carta de exame e sem soldo, pois não fazia parte da tropa paga, o militar ficaria totalmente sem “meios de poder servir” à monarquia e “de ser útil a si mesmo e a seus pobres pais”. Apesar da gravidade da situação e da confiança de que merecia ser atendido por “estar perfeitamente instruído”, João Salerno recebeu do Ministério uma resposta amarga como certos tipos de chocolate: “Não há que deferir”, diz o despacho ao seu pedido.

    Enquanto uns queriam viver de chocolate, ou melhor, do chocolate, outros preferiram trocá-lo por atividade, no mínimo, menos prazerosa. Um ano antes de João Salerno depositar na iguaria todas as esperanças de sustentar a si e à família, Vicente Ferreira, “choculateiro [sic] da Casa Real” e manipulador da manteiga de cacau no Hospital Real Militar do Rio de Janeiro, fez o mesmo tipo de requerimento. Só que pretendia justamente o contrário, ou seja, deixar de viver do chocolate que administrava aos doentes. Prostrado aos pés de D. João, a quem servia desde Lisboa, “não somente aprontando (...) o chocolate de boa escolha (...), mas ainda manipulando a manteiga de cacau tão indispensável no curativo de certas moléstias” (como queimaduras, cortes e picadas de cobra), Vicente Ferreira pedia sua transferência para o cargo de varredor ou de moço da Mantearia (repartição que cuidava dos artigos de mesa do serviço da família real).

    Embora os motivos de Vicente Ferreira talvez fossem justos – quem sabe desejava trocar as agruras do hospital por tarefas mais amenas –, não deixa de ser curioso ter anexado ao seu Requerimento, também na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, um atestado assinado pelo inspetor do Hospital Militar, frei Custódio de Campos e Oliveira. Por meio dele, descobre-se que Vicente Ferreira era uma referência na produção da manteiga de cacau. Fornecia o produto para a botica do hospital e “para a dos estados e domínios ultramarinos”, por ser o gênero “da melhor qualidade”.

    Não se conhece o desfecho do pedido de Vicente Ferreira, ao contrário do que aconteceu com o de João Salerno da Cruz. Ambos, no entanto, têm mais um ponto em comum: o chocolate não conseguiu proporcionar-lhes o prazer e a satisfação tão conhecidos por quem consome o produto. Enfim, é como diz o provérbio: “Não há gosto que não custe”.