Choro de índio

Stélio Torquato Lima

  • Com que rosto o Brasil iria se apresentar ao mundo após a Independência? Muitos escritores românticos buscaram o novo país como uma pátria livre, jovem e promissora. Foi nesse contexto que surgiu na cena literária brasileira a educadora, jornalista e escritora Nísia Floresta (1810-1885). Precursora da luta pela emancipação feminina, essa potiguar estreou no mundo das letras em 1831, quando começou a escrever artigos para o jornal Espelho das brasileiras. No ano seguinte, publicou o primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiça dos homens, uma tradução livre de Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft (1759-1797), escritora britânica considerada a pioneira do feminismo.

    Profundamente interessada na sociedade do seu tempo, Nísia fez de seus escritos um veículo em favor das mulheres, dos escravos, dos índios, não hesitando em se colocar do lado dos republicanos. Essa adesão se manifesta claramente na obra A lágrima de um caeté, longo poema épico composto de 712 versos, publicado em 1849.

    A obra de Nísia destoava da opção da elite brasileira de fazer do índio o símbolo da nação, tornando o excêntrico uma estratégia de afirmação da identidade nacional. O nativo possuía uma cultura bem diferente da do europeu: vestia-se de modo singular, ou simplesmente andava nu; tinha uma língua própria, e muitos habitavam as florestas, morando em casas de palha que em nada lembravam as moradias do homem branco. Mas o índio representado nas obras românticas logo se revelou um ser híbrido, que até trazia algo de “selvagem”, mas que também reproduzia hábitos da cultura europeia. Como exemplo, a literatura romântica brasileira foi marcada pela hesitação entre a América selvagem e a Europa civilizada.

    Os anos que precederam a publicação de A lágrima de um caeté tiveram sucessivas crises econômicas e políticas no Brasil. Quanto à economia, os principais produtos de exportação – o açúcar e o algodão – haviam sofrido uma queda acentuada de preço a partir da concorrência com as Antilhas e com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ocorriam vários problemas de ordem política, como insubordinações militares e levantes de caráter republicano durante o período regencial (1831-1840) e nos primeiros anos do Segundo Reinado (1840-1889). A bandeira do separatismo acentuava a dificuldade de definir a nossa identidade nacional.

    A escrita de Nísiafoi motivada justamente por um desses movimentos de caráter liberal e separatista: a Revolução Praieira, que ocorreu em Pernambuco entre novembro de 1848 e janeiro de 1850. O texto foi produzido logo após a morte do líder praieiro Nunes Machado (1809-1849). Isso explica por que a obra foi censurada pelo governo imperial, tendo vários versos suprimidos. Afinal,a obra de Nísia Floresta se filiou à tradição antimonárquica de Pernambuco, que foi palco de seguidos levantes políticos de cunho republicano, como a Guerra dos Mascates (1710-1711), a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824-1825).

    O poema se desenvolve em dois planos históricos. Na primeira metade, o foco recai sobre o período da colonização, apresentando como personagens centrais um índio da nação caeté e o colonizador português, que figura como opressor. Após ter sido despojado de seus bens e de seus entes queridos pelo invasor europeu, o nativo vaga sem direção, lamentando a perda de seu passado feliz.

    O caeté e o colonizador, portanto, estão em polos opostos. Trata-se de uma visão que só reconhece o bem no aborígine e o mal no colonizador, como se um pertencesse ao universo da natureza e o outro, ao mundo da cultura. Nessa linha de pensamento, o poema não hesita em classificar o europeu como um “selvagem das cidades”, bem distinto do selvagem honrado, destemido e digno que habita as matas. Neste aspecto, A lágrima de um caeté se afina com outras obras do romantismo brasileiro, que em geral reservou um retrato idealizado, glorificado, em relação ao índio:


    “Mais nobre, que o selvagem das cidades,

    As armas ocultando,

    O selvagem dos bosques se apresenta

    A peito descoberto...”


    O poema representa o embate entre natureza e civilização, oposição cuja fonte é a teoria do “bomselvagem” do iluminista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que defendia que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade. Nessa perspectiva, quanto mais integrado à natureza, que é situada pelo autor em polo oposto à civilização, mais o homem seria puro.

    Já a segunda parte da narrativa descreve alguns episódios da Revolução Praieira. Ainda que Nunes Machado seja o protagonista desse trecho da obra, o caeté não desaparece: o índio se mostra simpático à causa da Revolução, lamentando profundamente a morte do líder praieiro e se identificando com ele. Surge no texto um elemento opressor comum aos dois personagens: o português, seja ele o invasor luso ou o imperador D. Pedro II. Além disso, Nunes Machado confessa ter um parentesco com os caetés, reforçando os laços de identidade entre o índio e o herói praieiro:


    “Dos bravos Caetés se diz descendente,

    Sua triste raça jurou de vingar...

    Desde lá do berço aprendeu a amar

    O triste oprimido; dele é defendente.

                         (...)

    De repente troar ao longe ouviu-se

    Da artilharia o fogo... e de milhares

    De peitos Brasileiros sai o brado,

    Simulando o trovão, que o raio manda

    – Eia! avante! guerreiros libertemos

    A terra dos Caetés, a terra nossa!”


    Nada garantia, portanto, que a vitória do partido praieiro fosse promover qualquer mudança na situação do índio, porque o foco dos revoltosos era outro: vencer seus adversários políticos, os gabirus – assim chamados os membros do Partido Conservador. Por isso, uma personagem simbólica criada por Nísia, Realidade, alerta o índio caeté a não alimentar qualquer esperança em relação a uma melhoria das condições de vida de seu povo, caso os praieiros saíssem vencedores no embate contra as forças imperiais:


    “Em campo ei-lo agora com as armas na mão

    Mas seja um partido, ou outro que vença

    A tua ventura não creias farão!

    São outros seus planos, outra a sua crença”.


    Neste trecho, em vez de ser apresentado como um “selvagem dos bosques”, o índio surge com outros planos, mais semelhante ao homem branco, o que demonstra a dificuldade de conciliar a cultura nativa com a europeia. Se o poema de Nísia Floresta tenta negar o colonizador, paradoxalmente o acolhe como referência para a construção de nossa brasilidade.


    STÉLIO TORQUATO LIMAÉ PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ E AUTOR DA TESE “O INDIANISMO E O PROBLEMA DA IDENTIDADE NACIONAL EM A LÁGRIMA DEUM CAETÉ, DE NÍSIA FLORESTA” (UFPB, 2008).

                         

    Saiba Mais - Bibliografia


    DUARTE, Constância Lima.Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1995.

    FLORESTA, Nísia. A lágrima de um caeté. Natal: Fundação José Augusto, 1997.

    MACHADO, Ubiratan.A vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.

    RICÚPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004