Cidadãos em armas

Flávio Henrique Dias Saldanha

  • A instituição da Guarda Nacional (na gravura, dois artilheiros) visava à defesa da ordem, das leis e da Constituição. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)“Mero desquite amigável entre o Imperador e a Nação”. As palavras tranquilizadoras de Joaquim Nabuco para definir a abdicação de D. Pedro I, e o consequente fim do Primeiro Reinado no Brasil, tentavam amenizar um cenário que se anunciava turbulento. Para alguns, iniciava-se ali a verdadeira independência nacional. Mas para garantir que o desquite fosse mesmo amigável, naquele mesmo ano de 1831 foi criada uma milícia em defesa da nação. A Guarda Nacional teria muito trabalho pela frente.
     
    Os ânimos estavam exaltados no início do período regencial, com inflamados debates políticos e ataques pessoais na imprensa. Nos anos seguintes, de norte a sul do país, eclodiria uma série de revoltas: Cabanagem (1833-1836) no Pará, Sabinada (1837-1838) na Bahia, Balaiada (1838-1841) no Maranhão, e a Farroupilha (1835-1845) no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Mantinha-se aceso um forte sentimento antiportuguês, claramente identificado com a figura do ex-imperador. Sentimento que era alimentado pelo fato de os portugueses ocuparem lugares de destaque no comércio, nos setores administrativos e na alta oficialidade do exército. 
     
    As tropas eram vistas com desconfiança pelos homens que subiram ao poder após a abdicação de D. Pedro I. Havia rumores de que o ex-imperador poderia voltar, e muitos desejavam o seu retorno. Além da ampla maioria de oficiais portugueses, o exército era composto por soldados cuja origem era socialmente desprestigiada. Em geral, pessoas consideradas como vadias, viajantes errantes, trabalhadores indolentes, cuja sorte não importava a ninguém. O serviço militar era visto como castigo, conhecido como “tributo de sangue”. A população procurava de todas as formas fugir dessa obrigação, com subterfúgios como casar-se, automutilar-se ou fugir para matos vizinhos.
     
    Foi diante dessa situação e do clima de grande agitação política que a Regência Trina Permanente criou, em agosto de 1831, a Guarda Nacional. Seus quadros deveriam ser formados pelos cidadãos do Império do Brasil. Mas quem eram os cidadãos? De acordo com a Constituição de 1824, aqueles que contavam com uma renda mínima anual. Em uma sociedade baseada na escravidão, o cativo não tinha direitos nem rendas e, portanto, não podia ser membro da milícia. Os regentes esperavam contar com uma força que pudesse manter e defender a ordem, as leis e a Constituição do Império. Por ser civil, a Guarda Nacional estava subordinada ao Ministério da Justiça, ao passo que o exército estava vinculado ao Ministério da Guerra. Somente autoridades civis, entre elas o juiz de paz, podiam convocar a Guarda Nacional. Pronta para socorrer a pátria em perigo com seus cidadãos-soldados, a Guarda Nacional simbolizava o futuro, enquanto o exército, com sua tropa maltrapilha e seus oficiais portugueses, representava o passado.
     
    Ser guarda nacional significava escapar do temível recrutamento militar – que em consequência foi esvaziado: pela desconfiança que causava e por medida de economia, o exército teve seus efetivos reduzidos. Os regentes sabiam que uma corporação militar grande e forte poderia dar sustentação a governos ditatoriais, como era o caso de Juan Manoel de Rosas, na Argentina, e Antônio López de Santa Anna, no México.
     
    Mas nem tudo eram flores para quem ingressava na Guarda Nacional. A condição de cidadania do miliciano era atestada por um conselho de qualificação, presidido pelo juiz de paz e composto por seis cidadãos mais votados do município. Sua função era verificar se os alistados eram, de fato, detentores das rendas exigidas para ingresso na milícia. O conselho definia, ainda, quem iria para o serviço ativo e quem seguiria para a reserva. Os trabalhos, no entanto, nem sempre seguiam à risca suas atribuições: interesses políticos e particulares pesavam no processo. Aliados eram beneficiados e adversários perseguidos. Os desafetos, muitas vezes, eram excluídos sob a alegação de não alcançarem a renda mínima. 
     
    Diploma do Clube Militar de Oficiais da Guarda Nacional, de 1906. A instituição já estava se encaminhando para a sua extinção, que aconteceria no fim da década seguinte. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Havia uma série de isenções para a dispensa da milícia. De modo geral, quem detinha certa importância social podia abrir mão de assentar praça – ou, quando muito, era incluído na reserva. A lei abria esta exceção para senadores, deputados, conselheiros, presidentes de província, magistrados, vereadores e chefes de repartição. Igualmente para estudantes, eclesiásticos, professores, profissionais liberais, empregados públicos e feitores de fazendas com mais de 50 escravos ou com mais de 50 cabeças de gado. Mas mesmo os alistados no serviço ativo podiam evadir-se do ônus de servir: a saída era apresentar-se à cavalaria, menos requisitada e menos pesada do que a infantaria. Para servir nessa arma, bastava possuir um cavalo – caso contrário, alugavam-se os animais apenas para se apresentar nas paradas e revistas.  
     
    A responsabilidade pela defesa da ordem, da Constituição e das leis do Império acabou ficando com os guardas de posses mais modestas. O serviço prestado pelos milicianos era gratuito e a Guarda Nacional foi requisitada para várias atividades. Além de reprimir revoltas e combater quilombos, os guardas eram solicitados para participar de procissões religiosas, patrulhar e escoltar presos. Essa prestação de serviços às vezes dava margem a reclamações. Nas épocas de colheita, quando mais braços eram necessários nas plantações, os guardas que eram escalados para vigiar cadeias ou escoltar presos implicavam ausência de mão de obra nas lavouras e no comércio, resultando em perigosa falta de suprimentos nas cidades. Requisições constantes, especialmente nas vésperas das eleições, geravam queixas por parte dos comandantes da milícia e dos presidentes de província. “Não se dá maior injustiça! Manuel João está todos os dias vestindo a farda. Ora pra levar presos, ora pra dar nos quilombos... É um nunca acabar”, lamenta a personagem Maria Rosa, da peça O juiz de paz na roça (1838), de Martins Pena, sobre seu marido ter que servir à Guarda Nacional e perder o trabalho na lavoura.
     
    A escolha do quadro de oficiais era feita em eleição direta pelos próprios milicianos. Desde a criação da Guarda Nacional, esse sistema foi alvo de críticas. Para as autoridades competentes, os guardas não sabiam escolher seus oficiais, muitas vezes elegendo chefes despreparados e descompromissados com a moralidade e o serviço público. Ao reunir brancos e não brancos em situação juridicamente igual, as eleições dos oficiais constituíam um provável elemento de perturbação da ordem, aquela mesma que curiosamente a Guarda Nacional deveria manter. Poderia ocorrer o escândalo de se ter um fidalgo lado a lado com um modesto tropeiro. Ou, pior ainda, de um liberto vir a comandar seu ex-senhor. Em uma localidade da Bahia, autoridades relataram com desagrado a tentativa de um visconde e desembargador em concorrer nas eleições para oficial da Guarda Nacional. Elegeu-se apenas sargento, posto que, evidentemente, não condizia com o seu prestígio. 
     
    Para evitar casos assim, em 1850 foi realizada uma reforma na Guarda Nacional. O período regencial há muito terminara: D. Pedro II estava à frente do país e o Império seguia pacificado. Pelas mudanças da instituição, os chefes passaram a ser nomeados pelos presidentes de província, conforme sua aptidão política. O posto mais graduado era o de coronel, em geral exercido pelo mais influente proprietário rural. Seus agregados serviam nos batalhões sob seu comando, implicando domínio não apenas dos milicianos, mas também dos eleitores – que eram obrigados a votar nos candidatos apoiados por seu superior.
     
    Quando a Guarda Nacional foi extinta, em 1918, já na Primeira República, não desempenhava mais nenhuma função relevante e há muito deixara de ser a milícia dos tempos da Regência, responsável pela manutenção da ordem. Mas a figura do coronel permaneceu, conferida espontaneamente pela população àqueles que julgava deterem poder e influência. Temido e respeitado, cercado por amásias e jagunços, o coronel ditava com voz grave, na varanda da sua fazenda, as ordens a serem seguidas. Uma imagem clássica imortalizada pela literatura, e não tão distante de certa política (e certa milícia) que se mantém em diversos rincões do Brasil.
     
    Flávio Henrique Dias Saldanha é professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e autor dos livros Os Oficiais do Povo: a Guarda Nacional em Minas Gerais oitocentista, 1831-1850 (Annablume/Fapesp, 2006) e O Império da Ordem: Guarda Nacional, coronéis e burocratas em Minas Gerais na segunda metade do século XIX, 1850-1873 (Unesp, 2013).
     
    Saiba Mais
     
    CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
    CASTRO, Jeanne Berrance de. A Milícia Cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977.
    FERTIG, André Átila. Clientelismo político em tempos belicosos: a Guarda Nacional da província de São Pedro do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil (1850-1873). Santa Maria: UFSM, 2010.
    MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Access, 1999.