Cidade em trânsito

Laurent Vidal

  • Uma cidade cristã cercada de mouros por todos os lados. A Praça de Mazagão era o último ponto de resistência português no litoral do Marrocos, na rota do comércio para as Índias aberta no tempo das grandes navegações. Construída em 1513 com fama de inexpugnável, a cidade fortificada de fato resistira a sucessivos ataques muçulmanos por mais de dois séculos. Mas agora, em 1769, estava com os dias contados.

    O sultão Sidi Mohamed reuniu em torno de Mazagão uma armada com 120 mil soldados, e estava pronto para atacar. À frente de exatos 2.092 moradores, o governador Dinis de Melo e Castro só poderia resistir se Lisboa enviasse reforços urgentemente. O que viu chegar, no entanto, foi uma pequena frota de catorze navios, e com poucos soldados a bordo. Uma mensagem da parte do rei D. José I não deixava dúvidas sobre o que fazer: “Sua Majestade resolveu que, salvando-se a gente e a artilharia de bronze, nada se perdia em abandonar a mesma Praça aos Mouros”.

    Era 11 de março, de manhã cedo, e durante algumas horas Mazagão foi o teatro de uma verdadeira fúria coletiva. Antes de abandonar a cidade, homens e mulheres providenciaram a destruição do que deixariam para trás: quebraram tudo nas casas e nos altares das igrejas, cortaram as patas dos cavalos, transformaram as ruas em um campo de ruínas. Trazendo apenas as roupas do corpo, os moradores levaram três dias para sair da fortaleza, passando um por um pela estreita porta que dava saída para o mar e esperando os botes levá-los até os navios. Por fim, já a bordo, ouviram uma grande explosão. A Porta do Governador, que permitia o acesso terrestre à fortaleza, tinha sido minada, num último esforço para dificultar a entrada dos “infiéis”.

    Era o fim da ocupação. Mas não o fim de Mazagão. Desfeita na África, a cidade atravessaria o Atlântico para ser reerguida em outro extremo do Império português, carente de povoamento em suas fronteiras: a Amazônia.

    O homem que concebeu a transferência foi o ministro da Marinha e do Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), irmão do poderoso primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal. Mendonça Furtado havia sido o primeiro governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Organizara comissões de fronteira encarregadas de delimitar as possessões espanholas e portuguesas na Amazônia, e depois da expulsão dos jesuítas (1759), investiu na transformação das antigas missões religiosas em vilas. Mas o plano de consolidar o domínio da Coroa portuguesa na região esbarrava na escassez de colonos, principalmente ao norte do Rio Amazonas, atual estado do Amapá. Era uma área estratégica – propícia à navegação fluvial e ao escoamento de produtos da floresta –, que atraía a cobiça internacional. Prova disso foi o projeto francês de instalar 16 mil colonos em Kourou, na Guiana Francesa, em 1763.

    Uma vez ministro, Mendonça Furtado ordena a construção da Fortaleza de São José de Macapá (1764) e põe-se a buscar alternativas para instalar famílias naquelas paragens pouco acolhedoras. É justamente por essa época que começam a chegar da Praça de Mazagão inúmeras queixas sobre a degradação do clima social na fortaleza, com brigas entre moradores devido ao ócio e ao ambiente cerceado, e a propagação de epidemias. E a Coroa queria mesmo se livrar daquela possessão no Marrocos, agora considerada inútil – a nova geopolítica imperial se voltava quase inteiramente para o Brasil, onde se disputavam fronteiras com a Espanha.

    Por isso, quando os moradores da fortaleza embarcaram nos navios portugueses deixando Marrocos para trás, seu destino já estava decidido: todos eles – exceto os da nobreza e os religiosos – seriam enviados para a Amazônia e instalados numa Nova Mazagão, “para poderem em terras melhores viver com abundância, e livres dos sustos em que sempre os têm tido neste bárbaro continente”.

    Antes, porém, fariam uma escala de 15 dias em Lisboa. A hospedagem, “transitória”, estendeu-se por seis meses. A transferência exigia várias providências excepcionais. Na época com 10 mil habitantes, a cidade de Belém receberia de uma vez mais duas mil pessoas. Era necessário hospedá-las e alimentá-las até que a Nova Mazagão estivesse pronta para recebê-los. Mendonça Furtado sugeriu que fossem alugados quartos nas casas dos moradores. Caberia ao governador do Estado do Grão-Pará, Fernando da Costa de Ataíde Teive, criar uma comissão para escolher o local exato do futuro estabelecimento, seguindo a recomendação de Mendonça Furtado: que fosse ao longo do Rio Mutuacá, na margem norte do Amazonas.

    Enquanto isso, os ex-moradores da cidade-fortaleza permaneciam isolados em Lisboa, a maioria no Mosteiro dos Jerônimos. Houve tentativas de fuga, mas não se conhece nenhum caso bem-sucedido. Capturados, os fugitivos foram encarcerados na Torre de Belém até o embarque. Um poema anônimo escrito por um dos mazaganistas em Lisboa expressa os sentimentos de abandono e de traição que vivenciavam:

    Era o caos de triste confusão
    era vale verdadeiro de gemidos
    de suspiros lamento aflição
    se veem aqueles peitos guarnecidos
    era pois chorado Mazagão
    depois de que seus filhos vê perdidos
    retrato vivo do abismo eterno
    se pode haver retratos do Inferno.


    No dia 15 de setembro de 1769, “num clima de grande violência” – como descreve o próprio ministro Mendonça Furtado –, dez navios saem de Lisboa. O que atravessa o Atlântico é uma cidade encaixotada. Ela é composta de 1.642 pessoas (388 famílias, devidamente listadas), ferramentas de construção (pregos, martelos, fechaduras, machados, limas…), dinheiro, material para culto (imagens, objetos, pratas das antigas igrejas da praça africana), instrumentos agrícolas, pólvora e fuzis.

    No Grão-Pará, o governador Ataíde Teive escalara o comandante Moraes Sarmento e o engenheiro italiano Domenico Sambucetti para a tarefa de escolher o sítio destinado à fundação de Nova Mazagão. Em março de 1770 eles chegam à decisão: a cidade será edificada em Santa Ana, uma antiga missão jesuíta às margens do Rio Mutuacá. Os índios que ainda moram ali serão simplesmente retirados.

    Com mão-de-obra essencialmente indígena (além do apoio de alguns oficiais mecânicos vindos de Mazagão), as primeiras casas demoram a aparecer. As viagens de instalação das famílias só começam mais de um ano depois, em maio de 1771. Não que os mazaganistas tivessem pressa. Pelo contrário: dariam tudo para o atraso se prolongar indefinidamente. As raras notícias que começavam a chegar da Nova Mazagão não eram nada boas. Qualificam a vila como “incapaz de se habitar” e de “purgatório”.

    Distribuídos nas casas dos moradores de Belém, os mazaganistas recebiam uma ração cotidiana fornecida pelo governo. Durante a longa espera, os mais jovens procuraram trabalho e se integraram aos poucos à sociedade local. Muitos se casavam, e normalmente com moradores de Belém. Esta era uma estratégia para tentar escapar ao destino final: os recém-casados pediam ao governador autorização para se instalarem na casa do filho ou da filha, no Pará. Aceito o pedido, era a vez de a família daquele mazaganista também solicitar permissão para juntar-se à nova casa.

    Aos demais restava aguardar, ao ritmo dos embarques progressivos. Famílias, armas, bagagens e escravos eram instalados em canoas e durante quinze dias conduzidos por remadores índios, contornando a Ilha de Marajó até chegar a Nova Mazagão. Até 1778, cerca de 1.800 pessoas foram transferidas. Quando, enfim, desembarcavam, os colonos descobriam que ainda precisavam lutar para obter uma casa na nova vila erguida para eles. Houve muitos casamentos na comunidade no tempo em que permaneceram em Belém, mas nenhuma casa foi prevista para aquelas novas famílias. A tentativa de transformar os soldados em agricultores – sobretudo em produtores de arroz – também falhou. Nem eles nem os escravos tinham conhecimento do clima. E apesar de receberem durante um ano uma ração alimentar, poucas famílias conseguiam se auto-sustentar em Nova Mazagão. Acabaram passando fome. Fragilizados, eram vítimas de doenças e epidemias. Situada numa zona de várzea, a vila pouco a pouco apodrecia. Literalmente: os muros das casas desabavam, assim como a igreja (1779) e o pelourinho (1786).

    O apodrecimento físico conduz ao apodrecimento social: a vida nessa vila do fim do mundo é marcada por brigas e disputas contínuas a respeito da distribuição nas casas, das rações, dos remédios... As queixas se multiplicam e chegam à Corte. Depois da morte do rei D. José I e do conseqüente afastamento de Pombal (1777), as vozes dos mazaganistas começam a ser ouvidas. Em petição enviada à rainha D. Maria I em 1778, um dos moradores lembra que este “infeliz povo” tomou “em todas as ocasiões a defesa da Santa Fé Católica contra os Bárbaros e Inimigos dela”, mas, chegado hoje a “uma fatal ruína”, precisa “expor a Va Majestade os pesados trabalhos que tem sofrido desde a infeliz época da sua memorável extinção”.

    O fracasso da experiência amazônica é reconhecido oficialmente no dia 19 de setembro de 1783, quando o Conselho Ultramarino recomenda que “estes beneméritos e miseráveis vassalos se fazem muito dignos da Real Piedade de Vossa Majestade”, e pede que lhes seja concedida autorização para deixar Nova Mazagão. Sugere, porém, manter algumas famílias, pois “não deixa de ser útil a sua conservação nesta margem do Amazonas”. A vila de Nova Mazagão e a vila Vistosa (ou Viçosa) da Madre de Deus, criada também no governo de Ataíde Teive, deveriam servir de apoio à vila de São José de Macapá, mais próxima da fronteira da Guiana Francesa, região constantemente sob ameaça de incursões francesas.

    Assim se encerra o projeto político de transferência de toda uma comunidade. Assim acaba, nas margens do Rio Amazonas, a odisséia trágica de Mazagão. 

    Laurent Vidal é professor de História da Universidade de La Rochelle, na França, e autor de Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico. Do Marrocos à Amazônia (1769-1783) (São Paulo: Martins Editora, 2008).


    Saiba Mais - Bibliografia:

    AMARAL, Augusto Ferreira do. Mazagão: A epopéia portuguesa em Marrocos. Lisboa: Fundação Oriente e Comissão Portuguesa de História Militar, 2007.

    ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: Faup, 1998.

    CORREIA, Jorge. Implantação da cidade portuguesa no norte da África. Da tomada de Ceuta a meados do século XVI. Porto: Faup, 2008.

    FERREIRA, Eliana Ramos. “Estado e administração colonial: a vila de Mazagão”, in MARIN, Rosa Acevedo (org.). A escrita da história paraense. Belém: Naea/Ufpa, 1998.

    MOREIRA, Rafael. A construção de Mazagão: cartas inéditas, 1541-1542. Lisboa: Ministério da Cultura, 2001.

    Mazagão hoje

    No Marrocos, a fortaleza de Mazagão só foi reaberta em 1821, como bairro judeu. Depois de ter sido chamada de Mahdouma (a destruída), passou a ser El Jadida (a renovada). Durante o protetorado francês no Marrocos (1912-1956), arqueólogos e historiadores ajudaram a recuperar a história da cité portugaise, incluindo a toponímia original das ruas. Em julho de 2004, a fortaleza foi reconhecida como patrimônio da humanidade, por ser um “testemunho da troca de influências entre as culturas européias e a cultura marroquina” e um dos primeiros exemplos “da realização dos ideais do Renascimento, integrados às técnicas portuguesas de construção”.

    No Brasil, a vila foi transferida em 1915 para um sítio, a 30 quilômetros de distância, que recebeu o nome de Mazagão Novo ou Mazaganópolis. Com isso, a vila original passou a se chamar Mazagão Velho. A população se modificou ao longo do tempo, principalmente depois da instalação de quilombos na região, mas mantém vivas na memória as raízes marroquinas de Mazagão: todo ano, entre os dias 24 e 25 de julho, a vila se enfeita para celebrar a festa de São Tiago. Mazagão Velho é a única vila brasileira, entre todas as que organizam festas encenando combates entre mouros e cristãos, cuja história está diretamente ligada à reconquista e à conversão dos “infiéis”.
     
    Em 2003, com apoio do governo do Amapá e do Iphan, começaram as primeiras escavações em torno das ruínas da igreja colonial. Dirigidas pelo arqueólogo Marcos Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), descobriram 61 sepulturas, que foram transferidas para um mausoléu inaugurado em 2006, com a presença do governador do Amapá e de representantes do Marrocos e de Portugal.

    Saiba mais no site www.magmarqueologia.pro.br/MazagaoVelho.htm