Imensas estradas, represas artificiais, sistemas de segurança, numerosas comunidades em constante interação. Tudo isso em plena selva amazônica. Os ecologistas mais desavisados podem se assustar diante desse cenário. Mas, calma: não se trata dos efeitos da devastação recente. A ocupação da Amazônia por uma rede de populações bastante organizadas vem de muito longe...
Recentemente, um grupo de pesquisadores norte-americanos e brasileiros anunciou a descoberta de construções pré-colombianas no Alto Xingu, no norte do Mato Grosso. São grandes canais de comunicação e transporte que derrubam definitivamente a teoria, forte até meados do século passado, de que aqueles povos viviam isolados uns dos outros.
Mesmo restrita ao território dos índios kuikuros, a pesquisa encontrou evidência de redes urbanas bem estruturadas, com aldeias centrais e satélites. Por conta das guerras e, principalmente, das doenças trazidas pelos europeus, estas organizações perderam força, mas ainda sobrevivem em algumas áreas. “A idéia de redes na Amazônia já está bastante consolidada na antropologia. A diferença de nosso trabalho é a escala: descobrimos que elas eram vinte vezes maiores do que se pensava”, explica o antropólogo Carlos Fausto, pesquisador do Museu Nacional. No seu auge, as sociedades do Xingu chegaram a reunir 50 mil habitantes.
Também cai por terra o mito do bom selvagem. Os índios alteravam profundamente o meio em que viviam e, em alguns casos, as interferências eram bastante sofisticadas. Como forma de proteção, algumas aldeias construíram valas de até dois quilômetros de extensão. As estradas que as ligavam tinham até 30 metros de largura, e a localização das tribos era orientada pelos pontos cardeais e pelos rios. Ainda hoje, é freqüente a utilização de barragens artificiais para pesca. “Em alguns sentidos, a sociedade descoberta é comparável a outras urbanas do mundo antigo, particularmente em organização espacial e manejo do meio ambiente. Falta apenas a concentração da população em um ponto singular. Estes assentamentos eram multicêntricos, mas se articulavam em conjunto”, afirma o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida.
As pesquisas aliaram alta tecnologia a conhecimentos tradicionais. Liderados pelo cacique Afukaka, os índios indicavam a posição das antigas aldeias, que eram então mapeadas com tecnologia GPS. Segundo Afukaka, a movimentação entre as tribos ainda é constante. Nas cerimônias do quarup, quando se homenageiam os mortos, a população que vive nas regiões satélites vai até a tribo central. “Os grupos do Xingu fazem festa igual. É como uma aldeia só”, comenta o cacique.
No entanto, a exploração intensiva da Amazônia e os efeitos do aquecimento global vêm comprometendo a preservação das tradições indígenas. Segundo dados do Ipea, a temperatura em algumas áreas da floresta vai aumentar em quatro graus até o fim deste século. As previsões tomam por base um cenário otimista, com taxas de desmatamento muito menores que as atuais e o cumprimento rigoroso do Tratado de Kyoto. “Lugar onde tinha mato na época do meu pai, hoje é grama”, lamenta Afukaka, referindo-se aos arredores das terras demarcadas.
Antes que surjam novas cidades, os habitantes originais merecem que se conheça e se preserve a memória das primeiras civilizações que viveram na Amazônia.
Cidades sob o verde
Adriano Belisário