Civilização perdida

João Aires da Fonseca Júnior

  • “Se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo alto”. A afirmação do padre Alonso de Rojas em 1639 atesta a grande quantidade de habitantes que viviam às margens do Rio Amazonas naquela época. Ao longo de milhares de anos, a região permaneceu dominada por estas populações; no entanto, não é fácil reconstituir os detalhes desse passado. Os índios não tinham escrita, de modo que é preciso contar com os vestígios materiais.

    Os primeiros objetos que pertenceram a esses povos foram encontrados na segunda metade do século XIX pelo botânico João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Eram ídolos de pedra, pequenas esculturas que representavam divindades, utilizadas em rituais. Enviado pelo governo imperial para a área dos rios Tapajós, Trombetas e Jamundá entre 1871 e 1874, Rodrigues demarcava, com seu achado, o início da arqueologia amazônica.

    Relatos de viajantes que haviam conhecido a região séculos antes contribuíram para a descoberta de objetos de adoração. Estas representações diziam respeito aos diversos animais da Amazônia e da figura estilizada do homem. O padre jesuíta espanhol Christóbal de Acuña (1597- c.1676) e o padre português João Daniel (1722-1776) fizeram relatos sobre essas peças em épocas diferentes. Segundo ambos – Acuña escreveu em 1641 e João Daniel, em 1750 –, os ídolos de madeira e de pedra designavam boa sorte em caçadas e pescarias, vitória em guerras, sucesso em partos e em casamentos.  

    Já o relato do padre espanhol Gaspar Carvajal (1504-1584), que explorou o Rio Amazonas em 1540, ajudou Rodrigues a escolher o local de sua expedição. Segundo o sacerdote, poderiam ser encontrados resquícios arqueológicos da lendária tribo das Amazonas, a das mulheres guerreiras ou icamiabas. A importância de descobertas como essas era mostrar à comunidade científica que neste ponto do Baixo Amazonas, próximo à desembocadura do Rio Trombetas, no Lago do Sapucuá e na desembocadura do Rio Tapajós, existiram comunidades indígenas mais “desenvolvidas”, com cerâmicas elaboradas, contas, pingentes e estatuetas feitas em rocha. Para Barbosa Rodrigues, que praticamente iniciou as questões arqueológicas na região, as referências estavam na literatura dos viajantes.

    Entre os relatórios apresentados sobre a expedição, havia um exclusivamente dedicado ao ídolo achado. O documento informava detalhes sobre a peça, como o local onde ela havia sido encontrada: na Costa do Parú-Amoi. Essa descrição e outros quatro relatórios com anotações sobre a fauna e flora da região, as áreas de navegabilidade fluvial e diversos dados etnográficos e arqueológicos formaram a obra Rio Tapajós: exploração e estudo do Vale do Amazonas, editada em 1875.

    Assim que o livro foi publicado, iniciou-se um debate dentro da arqueologia sobre a procedência do artefato. Se a função da peça foi logo desvendada, o mesmo não se pode dizer sobre sua origem. Tanto para Barbosa Rodrigues como para o diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro à época, Ladislau Netto (1838-1894), a estatueta seria o mais perfeito exemplar que demonstrava o contato que o índio da Amazônia brasileira teve com áreas do Peru ou do Caribe. Para eles, esses índios não tinham a capacidade de produzir tamanha obra de arte, devido à sua complexidade de confecção e de representação dos animais contida no artefato. Na Amazônia, por falta de elementos “civilizadores”, qualquer expressão de arte em formas complexas, difíceis de serem produzidas, logo era deixada de lado, e era considerada como vinda de fora.  

    Uma interpretação contrária às de Barbosa Rodrigues e Ladislau Netto surgiu quando uma segunda estatueta de pedra foi encontrada, desta vez pelo jornalista, historiador e crítico literário José Veríssimo (1857-1916). Ao receber a doação e publicá-la em 1883 na Revista Amazônia, Veríssimo acreditava que ela só poderia ter sido feita na Amazônia, pois a estatueta em forma de peixe representava um acará-bararoá, espécie que existia somente em rios da Amazônia brasileira.

    A cada nova descoberta de estatuetas deste tipo – entre 1890 e 1902 –, mais se falava que a área do baixo Rio Amazonas, do Rio Trombetas e do Rio Tapajós havia sido ocupada por civilizações avançadas. O assunto estava constantemente nas páginas dos jornais e nos seminários de arqueologia. A conferência “Os ídolos de pesca do Brasil” (Les idoles de pêche du Brésil, no original em francês), em 1892, apresentada pelo padre Lisle du Dreneuc em Huelva, Espanha, no IX Congresso Internacional dos Americanistas, mostrava novas estatuetas.

    No século XX, os artefatos arqueológicos brasileiros passaram definitivamente a fazer parte do cenário internacional. Em 1906, o diretor do Museu Paraense, o artista Emílio Augusto Goeldi, apresentou as novas estatuetas que haviam sido encontradas na época durante o XIV Congresso Internacional dos Americanistas, em Stuttgart, na Alemanha. O estilo das peças era bastante semelhante a outras encontradas na América: traços característicos, como olhos e boca retangulares, bem como as representações de transformação do homem em animal, presente em onças ou pássaros encobrindo as costas do homem. Esta mesma ideia foi levantada em 1928 pelo diretor do Museu Etnográfico de Berlim, Konrad Preuss, no XXIII Congresso Internacional dos Americanistas, realizado em Nova York. Segundo ele, a origem dessas peças arqueológicas do Baixo Amazonas estaria na Colômbia, na região arqueológica conhecida como San Agustín. Nesta área, também seriam muito comuns as representações de homens se transformando em animal, ou de formas humanas misturadas com as de animais estilizados.

    Somente na década de 1940, após um hiato de alguns anos, voltou-se a discutir o tema, devido à descoberta de duas novas peças do Baixo Amazonas. A primeira delas – que atualmente compõe o acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro – foi descrita pelo antropólogo Barbosa de Faria como um provável recipiente para alucinógenos devido a um grande orifício que apresenta, tendo as estilizações do que parecem ser duas onças e dois rostos humanos. A segunda, que se encontra no acervo da Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, em Belém do Pará, tem as formas estilísticas de um rosto humano com um corpo de uma cobra.

    Considerado um tema importante e universal, a arqueologia amazônica, que conta com pesquisadores de vários países, tem seus objetos espalhados pelo mundo. Diversas são as instituições que possuem artefatos da região. No Brasil, as peças estão distribuídas entre o Museu Paraense Emílio Goeldi, no Pará, o Museu de Arqueologia e Etnologia, em São Paulo, e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. No exterior, há artefatos no Museu de Nantes, na França, e no Museu de Göteborg, na Suécia. Este último é o que tem a maior coleção.

    Mesmo mais de 200 anos depois da primeira descoberta, ainda são poucos os dados sobre as peças mencionadas e os povos indígenas que as possuíram. Também não é possível afirmar categoricamente se as hipóteses levantadas por Barbosa Rodrigues e Ladislau Netto são verdadeiras. Ou se José Veríssimo tinha completa razão ao deduzir que eram de produção local.

    A arqueologia amazônica ainda guarda muitas questões a serem respondidas. Mas esses ídolos amazônicos ilustram, mesmo que em pequena parte, a diversidade cultural que compunha as representações simbólicas destes antigos grupos indígenas.

    João Aires da Fonseca Júnior é autor da dissertação “Nimuendajú Revisitado: Arqueologia da Antiga Guiana Brasileira” (USP, 2008) e curador do Museu do Marajó.


    Saiba Mais - Bibliografia

    NETTO, L. Investigações sobre a arqueologia brasileira. Vol. 6. Rio de Janeiro: Archivos do Museu Nacional, 1885.

    RODRIGUES, João Barbosa. O Muyrakitã e os ídolos symbolicos. 2 vols. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899.

    Saiba Mais - Internet

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