A notícia de que a peste bubônica chegara ao Brasil, propagando-se a partir do porto de Santos, foi recebida com alarme pelas autoridades. Era 1899 e a ciência da microbiologia ainda engatinhava no país. Se confirmada a epidemia, teríamos que importar soro do Instituto Pasteur, em Paris – cuja produção, além de escassa para a possível demanda, era muito cara. A única alternativa viável seria produzir o soro no Brasil.
“A característica epidemiológica, a observação clínica e a prova bacteriológica nos levam a concluir que a moléstia que estudamos em Santos é, sem dúvida alguma, a peste bubônica”, atestou o médico Vital Brazil, do Instituto Bacteriológico do Estado de São Paulo, responsável pela equipe que realizou o primeiro diagnóstico da doença. Além das provas científicas, ele podia falar com propriedade dos sintomas, pois contraiu a peste durante sua estada em Santos, assim como parte de sua equipe.O episódio, que se iniciou como um grande susto para a saúde pública, transformou-se em um impulso inédito para a ciência nacional. Não apenas passaríamos a produzir nosso próprio soro contra a peste, como o próprio Vital Brazil se tornaria um pioneiro em outra descoberta científica ainda hoje essencial para salvar milhares de vidas mundo afora: o soro antiofídico.O nome completo de Vital Brazil é fruto de uma excentricidade do pai, que decidiu não passar seu sobrenome a nenhum descendente. Ao batizá-lo Vital Brazil Mineiro da Campanha, associava o menino ao município e ao estado onde nasceu no dia 28 de abril de 1865. Vital ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro aos 21 anos, conciliando os estudos com o trabalho: foi condutor de bondes, topógrafo, escrivão em uma delegacia de polícia, professor particular, primário e secundário, ajudou a varrer o colégio onde fazia curso de pastor presbiteriano, até que se tornou assistente do hospital da Faculdade de Medicina. Formou-se em 1891 e, em seguida, foi contratado pelo Serviço de Saúde Pública do Estado de São Paulo. Naquele ano, casou-se com Maria da Conceição Filipina de Magalhães, com quem viveria por 20 anos e teria nove filhos. Comissionado em Rio Claro e Jaú no período em que a febre amarela começava a expandir as fronteiras para o interior, logo foi nomeado Delegado de Higiene e depois Inspetor Sanitário. Nessas funções, teve a oportunidade de percorrer quase todas as cidades do interior paulista, ajudando a combater várias epidemias.Devido às preocupações da esposa com os perigos que corria em contato com tantas doenças, o médico acabou optando pela prática clínica, fixando-se em Botucatu. Lá passou a receber várias pessoas picadas por serpentes. Seu interesse pelo ofidismo já existia. Na universidade, testemunhara o experimento de um produto fitoterápico supostamente eficiente contra picadas de serpente. Enquanto morria o animal mordido por cobra no qual fora injetado o remédio, o outro animal, que não recebera o medicamento, não apresentava qualquer sintoma. Esse resultado desconcertante aguçou a curiosidade científica do estudante. Uma vez formado e em campo, o contato com a gente do povo fez com que tomasse conhecimento de ideias, crendices e da confiança que as pessoas depositavam nos chamados “curadores de cobra”. Resolveu, então, montar um pequeno laboratório em Botucatu: acumulou raízes, caules e frutos para o preparo de extratos e tinturas. Teve de vencer seu medo inato por serpentes. Os resultados das experiências foram todos negativos.Convencido de que precisava de mais recursos técnicos, voltou à capital paulista, onde publicou, em 1898, seu primeiro trabalho na Revista Médica de São Paulo. Nele relatava uma série de experiências com o preparado conhecido como “salva vidas”, feito com álcool e a raiz da planta conhecida como cipó de lagarto. Apesar do nome, o cientista reconhecia a ineficácia do remédio contra o veneno de jararacas e cascavéis.Foi a leitura dos primeiros resultados alcançados pela soroterapia – publicados pelo bacteriologista francês Albert Calmette – que levou o médico brasileiro a um novo caminho. Os dois travaram um embate sobre a questão da especificidade dos soros antipeçonhentos. Após passar um período na Ásia, Calmette desenvolvera um preparo contra a picada da espécie Naja tripudians, que também se mostrou eficaz para várias outras cobras da região. O francês acreditava ter descoberto o soro universal, que imunizaria todos os venenos de serpentes. Estava enganado. Vital Brazil constatou que o soro de Calmette não protegia contra as toxinas das cobras brasileiras. E em sessão pública de um Congresso na Escola de Farmácia de São Paulo, no ano de 1901, demonstrou a capacidade de neutralização dos soros que ele próprio vinha produzindo por aqui. Em um experimento, apresentou dois pombos com envenenamento ofídico e deu o soro específico a apenas um deles. Foi o único que sobreviveu.Enquanto isso, motivado pelo surto de peste bubônica em Santos, o Instituto Bacteriológico comprou uma fazenda a 9 km da capital para produzir soro a partir de anticorpos de cavalos. “Um rancho aberto ligado ao estábulo, no qual faziam a ordenha, foi rapidamente murado e adaptado para fins de laboratório. Foi ali, nesse ambiente paupérrimo, onde o desconforto corria parelho com a impropriedade das instalações, que tiveram início os primeiros trabalhos científicos do Instituto Butantan”, recordaria Vital Brazil, que em 1901 assumiu a direção daquele recém-criado “Instituto Serumtherapico”. Com prestígio político e científico, decidiu ampliar suas pesquisas para além do caso da peste, inaugurando uma linha de estudo e produção de soros ligadas ao ofidismo.
Em 1905, comprovaria definitivamente sua descoberta, ao relatar o primeiro caso da cura de um indivíduo picado por jararaca e tratado com o soro específico. Anunciou ainda a produção do soro polivalente: mistura dos soros contra os venenos de cascavéis e jararacas, para tratar casos em que a espécie da serpente era desconhecida, eficiente também contra o veneno da cobra coral, de ação mais tóxica.Em teoria, estava garantida a cura para qualquer pessoa picada por cobra. Restava o desafio de coletar veneno de cobra suficiente para produzir os soros, e depois conseguir distribuí-los para todo o país. Vital Brazil uniu as duas pontas do problema e lançou uma ampla campanha junto a proprietários rurais – com auxílio também da rede ferroviária – para que capturassem, sem matar, as serpentes que encontrassem em suas terras. Inventou por conta própria e mandou distribuir uma caixa de madeira com dois compartimentos que permitiam a colocação da cobra e seu transporte, reduzindo o risco para quem manipulasse o objeto. Em troca das cobras capturadas, o Instituto Butantan enviava para as fazendas ampolas de soro e seringas.No campo científico, Vital Brazil demonstrava, pela primeira vez, um conceito que está na base da imunologia moderna: o da especificidade antigênica, que estabelece anticorpos diferentes para toxinas diferentes. As experiências acumuladas permitiram ao cientista lançar, em 1911, o livro A defesa contra o ofidismo, rapidamente traduzido para o francês e também impresso em japonês, destinado aos imigrantes que aqui chegavam.Após anos à frente do Instituto Butantan, o médico mineiro deixa sua direção e transfere-se para Niterói, no Rio de Janeiro, onde cria o Instituto Vital Brazil em 3 de junho de 1919 – que segue os mesmos passos da instituição paulista e também se torna referência na área. Retorna ao Butantan em 1924, permanece lá por mais três anos, quando se afasta por motivo de doença. Fecha, assim, o primeiro ciclo do centro de pesquisas que ajudou a colocar de pé, deixando como legado o caráter público de sua missão e a busca de formas de gestão que permitissem seu desenvolvimento com autonomia e liberdade. O instituto que leva seu nome, em Niterói, é hoje administrado pelo governo do estado do Rio de Janeiro.Ao conseguir, ainda no início da carreira, domar seu medo de serpentes, o brasileiro acabou dominando também alguns dos conhecimentos mais importantes sobre o assunto. Até hoje as picadas de cobra são tratadas pelo mesmo método desenvolvido há mais de um século por Vital Brazil.Nelson Ibañez é médico, professor na Santa Casa de São Paulo e coordenador do Laboratório de História da Ciência do Instituto Butantan. Olga Sofia Fabergé Alves é cientista social e pesquisadora do Instituto Butantan.Saiba maisPEREIRA NETO, André de Faria (org.). Vital Brazil: Obra Científica Completa. Niterói: Instituto Vital Brazil, 2002.ROSA, Nereide Schilaro Santa. Vital Brazil. São Paulo: Duna Dueto Editora, 2006.InternetMuseu Vital Brazilwww.vitalbrazil.rj.gov.brRede Vital para o Brasilhttp://redevitalparaobrasil.com
Cobra criada
Nelson Ibañez e Olga Sofia Fabergé Alves