Coerência e clareza

Jean Marcel Carvalho França

  • Marcel Proust (1871-1922), o romancista francês, afirmou que cada pequeno gesto executado ou palavra pronunciada pelo ser humano são portas de entrada para todo um universo social. O escritor explicou que os indivíduos, em suas manifestações mais ínfimas e íntimas, imprimem sempre às coisas e às pessoas com as quais interagem os sentidos que trazem inscritos nos seus corpos, sentidos, produzidos socialmente, que moldam seu estar no mundo.

    O historiador, naturalmente, não escapa de tais vicissitudes: as questões que coloca para as sociedades passadas e as respostas que lá encontra só são possíveis graças a essa espécie de fundo impensado, coletivo e não consciente que alimenta seu pensamento. Os estudiosos do passado, porém, ao contrário do senso comum, são constantemente impelidos a lançar luz sobre essa zona obscura e a tornar claras, refletidas e sistemáticas aquelas determinações, aquelas noções fundadoras – acerca do homem, da vida em sociedade, do caráter determinado ou não das ações humanas, do sentido de tais ações, etc. – que sustentam sua abordagem do passado.

    Esse encargo, inerente ao ofício, passa necessariamente pela explicitação dos pressupostos teóricos que norteiam o trabalho de pesquisa do historiador, do tipo de óculos por meio do qual ele enxerga o mundo à sua volta. Há quem jure não usar quaisquer óculos, quem assegure escrever História ao sabor dos documentos, como se nesses oráculos se alojasse a totalidade das perguntas e respostas que interessam ao pesquisador. Tais devotos da empiria insistem em não reconhecer que a escolha dos seus temas de pesquisa, dos documentos que optam por consultar, do modo como decidem agrupá-los e das questões que lhes colocam só é possível em razão dos pressupostos que trazem consigo, pressupostos selvagens, na medida em que não os têm claros nem para si próprios.

    Outros, mais sensíveis ao problema, creem ser possível resolvê-lo recolhendo conceitos de teorias diversas – que muitas vezes dizem coisas totalmente diferentes sobre o mundo – e agrupando-os num todo sem muita coerência. Trata-se de uma espécie de coletânea das ideias que mais agradam ao pesquisador ou que supostamente mais se adequam ao seu objeto de pesquisa, sem grande preocupação com as tradições teóricas a que pertencem essas ideias. Daí não ser incomum o leitor se deparar com estudos históricos que são sustentados por conceitos provenientes de uma teoria que diz que o homem é quadrado e, simultaneamente, de outra que diz que o mesmo homem é redondo.

    Escapar de tais armadilhas é dever de todo historiador, mas não uma prática corrente. Ao contrário, somos, em geral, pouco atentos a essas implicações do ofício, que tendemos a classificar como picuinhas de sociólogos e filósofos, ambos abstratos demais para quem está acostumado à concretude do documento. No entanto, quer queiramos ou não, quer pensemos nisto ou não, a história que escrevemos está necessariamente determinada por um paradigma, por um modo de construir o mundo. Se assim é de qualquer modo, é melhor que tal paradigma seja claro e coerente.

    Jean Marcel Carvalho Françaé professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999) e de A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII (José Olympio, Editora da Unesp, 2012).