Coloniza-me e devoro-te

Frédérique Langue Tradução: Carolina Ferro

  • Gravura de 1962 mostra os papagaios próximos ao quadrante e ao mapa. Os animais da fauna brasileira eram de grande interesse dos franceses. (Fundação Biblioteca Nacional)

    Quando os europeus ganharam os mares e alcançaram a América – ao Norte e ao Sul – e o Extremo Oriente, começaram a definir novas fronteiras para o mundo. Não apenas as fronteiras físicas, mas também, e principalmente, aquelas intelectuais e culturais. A partir do século XVI, os colonizadores do Novo Mundo sofreriam os impactos de suas próprias descobertas. Tinha início o incrível fenômeno de americanização dos povos europeus.

    A importância das descobertas e de sua “recepção” – com a chegada dos primeiros “selvagens”, animais e plantas incomuns nas cortes da Europa – resultou em uma revolução sem medidas para o mundo e as experiências conhecidos até então. A imagem das “Índias Ocidentais”, aquela que se forjou no contexto do Renascimento europeu, deu lugar a uma “memória do Novo Mundo”. E ela seria inscrita na longa duração.

    Américo Vespúcio aparece na litogravura de Zezon, de 1835. Os cosmógrafos de Saint-Dié, cidade francesa, deram o nome do navegador italiano ao novo continente descoberto.A odisseia de tantos marinheiros, aventureiros, estudiosos, padres, religiosos católicos ou protestantes e mercadores mostra que os destinos da metrópole e do Novo Mundo estariam intimamente ligados. No caso francês, um vasto imaginário do Renascimento percorreu de Saint-Laurent (no Canadá) e Louisiana às Antilhas (São Domingos), à Guiana e ao Brasil. Escritores, cartógrafos e pintores, em seus relatos de viagem, desempenharam um papel importante na difusão dessa nova visão de mundo. Mesmo com certas idealizações, eles foram muito além de uma imagem exótica e pitoresca das novas terras.

    A França das descobertas não é mais o Estado monolítico do Grande Século (segunda metade do século XVII, que corresponde ao reino de Luís XVI), católico e centralizado política e socialmente. As sensibilidades já haviam sido confrontadas com mudanças decisivas, tanto em relação à cultura (a influência italiana e a redescoberta da Antiguidade) como na ordem religiosa e política (a Reforma protestante e as guerras de religião). O filósofo Michel de Montaigne (1533-1592) não decepciona ao colocar em questão o caráter “civilizado” dessas guerras cruéis, opondo-as aos combates dos “canibais” do Novo Mundo.

    Em 1550, um exemplo de batalha “selvagem” foi representado na cidade de Rouen, a segunda do Reino da França, por ocasião da chegada do rei Henrique II acompanhado de sua esposa Catarina de Medici. Em 1562, a cidade expôs mais uma vez, na visita de Carlos IX, “guerreiros” índios vindos do Brasil. Nessas festividades, as primeiras do gênero na Europa, os verdadeiros índios tupinambás foram envolvidos em combates sob a água e depois a bordo de canoas – quando aparecia o carro de Netuno puxado por cavalos-marinhos. Os índios da América eram frequentemente apresentados nas cortes europeias ao lado de objetos e de animais exóticos. Os cosmógrafos e os cartógrafos oferecem as primeiras representações do Novo Mundo e os artistas – notadamente os gravuristas – ficam fascinados pelos temas do “bom selvagem” e da amazona, a versão feminina, mais guerreira.

    Antes de meados do século XVI a França estava cercada pelo Império de Carlos V, e só no reinado de Henrique II (1557-1559) começa a tentar tirar proveito comercial de suas descobertas no Atlântico Sul. Mas são os banqueiros italianos e espanhóis que financiam os mercadores normandos, movimentando o comércio do pau-brasil (as “frotas de madeira”) para tingir os tecidos produzidos nos ateliês de Rouen.

    A arte do Renascimento inspirou as circulações culturais entre a Itália e a região de Flandres. Celebravam-se os modelos da Antiguidade grega e romana, ao lado de escolas realistas do norte da Europa e do Maneirismo. Muitos artistas italianos passaram a influenciar pinturas, arquiteturas, esculturas e gravuras, orientando a suntuosa encenação de virtudes encarnadas pelos soberanos, tanto os antigos como os modernos. Casas e palácios de príncipes eram decorados de pinturas alegóricas e ornados de esculturas de ninfas e de deusas.

    Os atores desse novo humanismo descobridor das “maravilhas” do Novo Mundo, que os poetas comparam aos heróis da Antiguidade (como Ulisses e Jasão), são cosmógrafos como Jacques Cartier e André Thevet – a serviço dos reis François II, Henrique II, Carlos IX e Henrique III. Os mapas, cada vez mais precisos, elaborados logo após as viagens, são decorados de animais fabulosos, também encontrados nas expedições.

    As gravuras da época estabelecem inegável paralelo gráfico entre as guerras de religião da Europa e os costumes guerreiros dos canibais. Os autores de relatos, André Thevét (1502-1590) ou Claude d'Abbeville (?-1632), insistem a este respeito sobre as maravilhas desses novos paraísos, das “singularidades” da França Antártica, das “admiráveis singularidades e os costumes dos índios habitantes da ilha do Maranhão”, da empresa missionária dos Capuchinhos apoiada pela França de Maria de Medici (1612-1615). Os gravuristas frequentemente se interessam por costumes estranhos, em particular aqueles dos antropófagos descritos por Théodore de Bry na coleção de viagens na América (1592), em que evoca o encontro dos protestantes com os tupinambás. Condenando a crueldade dos conquistadores espanhóis e relativizando a “barbárie” que consistia em comer seu próximo, Montaigne esboça a teoria que o Iluminismo, no século XVIII, faria conhecer como o “bom selvagem”, dando voz a novos saberes não eurocêntricos.

    De fato, navegadores franceses haviam abordado o Brasil bem antes da primeira tentativa de estabelecimento da França Antártica. Foram os normandos, atraídos pelo comércio do pau-brasil, do urucum e de animais exóticos, como macacos e papagaios. No começo do século XVI, o filho de um cacique indígena de Pernambuco foi capturado e educado na Normandia. Os contatos se multiplicam entre mercadores normandos e seus intermediários tupinambás, engendrando um primeiro processo de aculturação e mestiçagem. Os tupinambás estão na origem da difusão do tabaco – como relatou ao rei o embaixador da França em Lisboa, Jean Nicot, em 1560 – utilizado na forma de rapé e considerado à época um remédio contra a dor de cabeça. A autoria do relato fez com que o tabaco ficasse conhecido como “erva à Nicot” (donde viria a “nicotina”). Seu uso se expandiu mesmo com a condenação dos moralistas e do papa Urbano VIII. O sucesso da cultura do tabaco foi tanto que um monopólio de Estado foi instaurado, sob a égide de Colbert, ministro de Estado de Luís XVI, no século XVII.

    As disputas na América refletiam os embates religiosos da época. A falha do católico Villegagnon – que entrou em conflito com os protestantes de sua expedição à Baía de Guanabara e perdeu para os portugueses em 1555, na primeira “França Antártica” – seria compensada pela vitória sobre os espanhóis e o estabelecimento dos protestantes franceses na Flórida em 1564. A herança literária também compensou a derrota na Guanabara, se considerarmos o relato elogioso e verdadeiramente etnológico escrito por Jean de Léry, um enviado do próprio reformador João Calvino (1509-1564). No final das guerras de religião, sob o reinado de Henrique IV, é uma nova política de descobertas e explorações que vai tomar forma, encarnada por Samuel Champlain (1567-1635). Navegador e cartógrafo, explorador do Golfo do México ao rio Saint-Laurent e interior do Canadá, ele é o “pai da nova França”.

    Alguns evangelizadores levam de volta a Paris as maravilhas do Novo Mundo, como índios tupinambás vestidos com suas melhores roupas de plumas. Apesar das descobertas realizadas bem mais ao norte do continente americano, ainda são os índios (tupinambás, tamoios, caetés etc.), os animais e as plantas exóticas do Brasil que ocupam a maior parte do imaginário europeu. Isso abre novas perspectivas para a história das ideias (religiosas, científicas) e para a reflexão sobre a arte e as ciências naturais.

    Todas essas tentativas de colonização e comércio conduzidas pelos franceses levaram a uma consciência diferente que, a essa altura, servia à Coroa portuguesa. No Brasil, os portugueses inauguravam seu novo ciclo exportador, fundado não mais na exploração da madeira, mas nas riquezas da cana-de-açúcar.

               

    Frédérique Langueé diretora de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), e autora de e coautorade Fronteras y sensibilidades en las Américas(Madrid, Doce Calles, 2011).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    DAHER, Andrea. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

    GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo – Historia de una mundialización. México: FCE, 2010.

    THEODORO, Janice. América Barroca. São Paulo: Editora Nova Fronteira / Edusp, 1992.