A notoriedade que os doces têm na mesa dos portugueses é antiga: vem do século XV, quando Portugal iniciou uma produção de açúcar em larga escala em suas colônias atlânticas. O cardápio de guloseimas ficou ainda maior com o cultivo da cana-de-açúcar no Brasil. Mas tanto aqui quanto na Europa, o começo dessa tradição está profundamente ligado à Igreja.
A princípio, a tarefa era uma responsabilidade das irmãs monjas. No início da Época Moderna, a população feminina dos conventos era, em sua maioria, composta de mulheres que não tinham escolhido o hábito por fé, e sim por imposição social – normalmente, familiar. A feitura de quitutes ajudava a suportar a rigidez do claustro.
Essa produção ganhou grande impulso nos séculos XVIII e XIX, quando Portugal passou a ser o principal produtor de ovos da Europa, e possivelmente do mundo. A maior parte dela tinha destino certo: a clara era um elemento purificador na fabricação do vinho branco – o termo “clarificação” indica este processo, que tem como efeito a decantação e a aglutinação – e servia para engomar as roupas da aristocracia e os hábitos de freiras e padres. Nos conventos portugueses, o rigor e a tradição exigiam roupas fartas, pesadas, com palas, golas e punhos perfeitamente engomados. Além disso, para cumprir o cerimonial cristão, fabricavam-se hóstias em grandes quantidades para a comunhão – capaz de alimentar a alma e manter o corpo casto – usando o singelo ingrediente.
Mas com tanta clara sendo exportada para países europeus produtores de vinho, como França, Espanha e Itália, qual seria o destino das gemas? As freiras, em seu ritual de separá-las, perceberam que o desperdício poderia se transformar num “pecado lucrativo”: a produção de iguarias finas que se tornaram a marca registrada da culinária lusitana. Nas fazendas mantidas pela Igreja, nos mosteiros e, principalmente, nas centenas de conventos que se espalhavam pelo interior do país, a gema servia de alimentação para as criações de porcos e outros animais, que, por sua vez, alimentavam monges, freiras e aldeões das redondezas. Mas a gema disponível era tanta que ainda assim sobrava.
A quantidade de matéria-prima, aliada à fartura do açúcar que vinha das colônias, se transformou em inspiração para o surgimento de experimentos doceiros à base de gema de ovos realizados pelas cozinheiras dos conventos. Não por acaso, muitos nomes de doces portugueses são inspirados na fé católica: argolas da abadessa, barrigas de freira, beijo de frade, fatias celestes, farrapos do céu, manjar celeste, orelhas de abade, palmas de abade, papos de anjo, queijos do paraíso, toucinho do céu e o pão de ló – uma homenagem a Ló, sobrinho de Abraão, salvo por anjos de Gomorra às vésperas da destruição da cidade pela ira de Deus. Em 1752, durante o reinado de D. José I (1714-1777), o Regimento dos Confeiteiros – regulamento que determinava princípios e orientações para confeiteiros e doceiros de Portugal – já citava alguns desses quitutes.
O destino das iguarias, mais do que a alimentação dos religiosos, era a venda nos vilarejos das redondezas. Rapidamente, os doces de ovos se transformaram em uma importante fonte de renda para muitas cidades de Portugal, migrando para os restaurantes de Lisboa, Porto, Setúbal e Guimarães. Sua comercialização servia para reforçar o orçamento dos conventos, que eram mais de trinta só em Lisboa. No Mosteiro de Santa Clara de Guimarães, cada religiosa recebia 6$400 réis por ano como pensão. Pouco dadas aos rigores monásticos, as freiras achavam insuficiente a soma a que tinham direito, e encontraram na confecção de doces um meio de aumentar essa renda. Mas não sem enfrentar dificuldades.
Certa vez, o arcebispo de Braga e filho ilegítimo do rei D. João V (1689-1750), D. Gaspar de Bragança (1716-1789), recebeu, no início de dezembro de 1758, uma informação que o obrigou a tomar medidas drásticas. Segundo o relato que lhe foi passado, no período do Natal, as freiras de Santa Clara de Guimarães costumavam gastar mais tempo preparando doces do que se dedicando ao serviço de Deus. D. Gaspar não titubeou: proibiu a confecção de quitutes do início do Advento – o domingo mais próximo de 30 de novembro – até o dia 7 de janeiro, logo depois da Festa de Reis. Em 1760, esta proibição seria renovada e agravada, passando a começar no dia de Santa Teresa (15 de outubro).
A primeira ordem religiosa feminina a se estabelecer no Brasil foi a das clarissas, seguidoras de Santa Clara de Assis (1194-1253), atendendo a uma solicitação da Câmara, da nobreza e do povo da Bahia. Vindas de Évora (Portugal), chegaram no dia 9 de maio de 1677, representadas pelas quatro monjas que acabaram fundando o Imperial Convento do Desterro de Salvador. Assim como os beneditinos, elas também seguiram para o Rio de Janeiro, onde fundaram o Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda, em 26 de julho de 1678, com o ingresso de doze postulantes à clausura, observando a Regra das Concepcionistas Franciscanas e as Constituições do Mosteiro da Luz de Lisboa, adaptadas ao nosso país.
A circulação de tantos religiosos pelo território brasileiro ajudou a sedimentar o gosto pelos doces na Colônia. Um dos fatores que mais contribuíram para isso foi a cultura da cana-de-açúcar, que, trazida da Ilha da Madeira, logo se adaptou ao solo tropical. Aos poucos, as sobremesas foram ganhando contornos brasileiros. A grande variedade de frutas proporcionou uma gama de compotas e cristalizados que Portugal não poderia imaginar. Nas fazendas do Nordeste açucareiro, as iguarias doces se enriqueciam com os frutos da terra, ganhando novos temperos e perfumes pelas mãos habilidosas das cozinheiras. Estes, entretanto, não eram doces religiosos.
Enquanto isso, outros doces eram produzidos em segredo no silêncio dos conventos em nosso país. As monjas portuguesas, valendo-se dos produtos locais, reinventaram a tradição. A culinária doce passou a fazer parte da vida das senhoras da casa colonial, criando a expressão para seus sentimentos e sua arte. Aliás, visitar uma nobre era o grande desejo das esposas dos emergentes. O modo de se comportar à mesa, a prataria, a cristaleira e as louças em que eram servidos os doces viravam o assunto das fofocas semanais. As sinhás copiavam e reproduziam as receitas dos conventos para impressionar as visitas. Assim, mostravam que, mesmo vivendo na Colônia, eram “civilizadas”. Donzelas e jovens senhoras embalavam em papel delicadamente recortado os apetitosos quitutes que suas mãos criavam.
De acordo com o antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987) “o açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não pode ser separado da civilização nacional”. Muitas das receitas hoje consideradas tradicionalmente brasileiras são de origem portuguesa, como o arroz-doce, o papo de anjo e a ambrosia. O sabor tropical foi exportado para as mesas dos nobres, e ainda hoje, cinco séculos depois, os brasileiros compartilham a mesma paixão do país do Velho Mundo: saborear as delícias do açúcar.
FABIANO DALLA BONA É PROFESSOR DE LÍNGUA E LITERATURA ITALIANA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E AUTOR DE O CÉU NA BOCA (TINTA NEGRA BAZAR EDITORIAL, 2010).
Saiba Mais - Bibliografia
CABRAL, Maria Isabel de Vasconcelos (org). O livro de receitas da última freira de Odivelas. Lisboa: Verbo, 2000.
FIALHO, M; SARAMAGO, A. Doçaria dos Conventos de Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
RIBEIRO, Emanuel. O doce nunca amargou... Doçaria portuguesa, história, decoração, receituário. Sintra: Colares Editora, 1997.
Com açúcar e afeto brasileiros
Fabiano Dalla Bona