Com as enxadas em punho

Pablo F. de A. Porfírio

  • Na década de 1950, um grupo de camponeses que vivia no Engenho Galileia, localizado na Zona da Mata de Pernambuco, tinha dificuldade para pagar o foro, uma espécie de aluguel cobrado mensalmente pelo uso da terra. A pobreza era tanta que, na hora de transportar seus mortos até a sepultura, era preciso pegar caixão emprestado com a prefeitura, e a devolução tinha que ser feita após o sepultamento. Eles criaram, então, uma associação de ajuda mútua, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP).
    O dono do Engenho Galiléia, Oscar Beltrão, foi convidado para ser o presidente de honra da Sociedade, mas retirou o apoio após ser alertado por outros donos de engenho sobre uma possível motivação comunista naquela organização. Ele acabou ordenando que o movimento fosse encerrado. Os camponeses não obedeceram e buscaram apoio o de políticos e de entidades públicas no Recife.

    Sem conseguir auxílio do governador Cordeiro de Farias (1901-1981) ou na Assembleia Legislativa, a comissão procurou Francisco Julião (1915-1999). O deputado socialista lia o Diário de Pernambuco na varanda de sua casa quando José dos Prazeres, um dos líderes do grupo, chegou e expôs a questão. No final da conversa, Julião aceitou defender os interesses dos foreiros, iniciando uma série de confrontos com donos de engenho e com o poder público. Começava a nova jornada de um dos líderes de esquerda mais conhecidos e temidos antes do golpe de 1964.

    A mobilização por melhores condições de vida no campo ganhava destaque na imprensa, principalmente a partir da realização do Congresso de Salvação do Nordeste, organizado pela Prefeitura do Recife em 1955, no qual se procurou demonstrar que a seca não era resultado exclusivo dos aspectos geográficos, mas também de fatores socioeconômicos. No mesmo ano foi realizado o 1° Congresso de Camponeses de Pernambuco, organizado pela SAPPP, com a participação de cerca de três mil camponeses. A imprensa noticiava cada vez mais as ações desses trabalhadores, chamando as sociedades agrícolas, cuja influência começava a se espalhar pelo interior do estado, de “Ligas Camponesas”. A expressão era uma referência às organizações estruturadas pelo Partido Comunista na década de 1940 com o objetivo de tentar fazer uma reforma agrária.

    Francisco Julião começou a utilizar cordéis cantados nas feiras livres do interior de Pernambuco, panfletos e cartilhas para mobilizar os trabalhadores rurais e promover a fundação de novas sociedades agrícolas em diversas propriedades e municípios do estado. O objetivo não se restringiu à promoção de ajuda mútua, como na primeira criada no Engenho Galileia, mas começou a incorporar a dimensão da luta por uma reforma agrária.

    No final da década de 1960, diversos grupos de jornalistas se dirigiram ao Nordeste, sobretudo Pernambuco, para conhecer a organização do movimento que conseguira, inclusive, a desapropriação do Engenho Galileia em 1959. Professores e representantes de governos também se interessaram pelo movimento; queriam conhecer e entrevistar o líder dessa grande mobilização de camponeses. Francisco Julião ampliava a sua rede de influência em âmbito regional e nacional com a publicação de reportagens nos principais jornais e revistas do Brasil. O Correio da Manhã, por exemplo, publicou uma série de reportagens sobre as Ligas Camponesas e Francisco Julião, feitas por Antônio Callado. Estes textos obtiveram considerável repercussão, sendo debatids inclusive no Congresso Nacional.  

    Cada vez mais famoso, ele passou a se relacionar com outros líderes de esquerda em diversos estados e países, principalmente Cuba, onde estabeleceu um intenso intercâmbio com Fidel Castro. Começou a defender para o Brasil os ideais de uma revolução a partir do campo. Por isso, foi acusado de receber dinheiro e apoio logístico cubanos para organizar uma guerrilha rural. O mundo vivia o período da Guerra Fria, com Estados Unidos e União Soviética disputando a hegemonia dos projetos políticos. Uma revolução comunista no Nordeste do Brasil significaria, para os EUA, a perda de uma região geograficamente estratégica, sobretudo pela proximidade com a Europa, além dos riscos da propagação desse regime para o resto da América Latina.

    Julião também se tornou notícia na imprensa internacional. O jornal The New York Times publicou na primeira página da edição de 31 de outubro de 1960 uma reportagem sobre a mobilização dos camponeses com o seguinte título: “A pobreza do Nordeste do Brasil gera ameaça de Revolta”. O texto alertava para a crescente possibilidade de uma revolução. Segundo o jornal, as Ligas Camponesas propagavam a doutrina comunista.

    Além disso, a Central Intelligence Agency (CIA) observava a aproximação do movimento com representantes do regime político soviético. Um dos relatórios afirmava: “As Ligas Camponesas são lideradas por Francisco Julião, que tem indicado uma longa admiração por Fidel Castro e Mao Tse-tung e (…) tem declarado desde o início deste mês: ‘Pela lei ou pela força, nós exigimos a reforma agrária, a reforma urbana e a reforma financeira’. Julião, que se descreve como uma marxista, mas não um comunista, prognosticou que a revolução logo começaria no centro do Brasil”.

    Esse cenário contribuiu para que, em 1961, o governo dos EUA enviasse a Pernambuco uma missão chefiada pelo senador Edward Kennedy (1932-2009), irmão do presidente John Kennedy (1917-1963), para avaliar in loco o que era divulgado na imprensa. Também nesse período, um grande número de técnicos e representantes do governo norte-americano começou a atuar no Nordeste, principalmente em Pernambuco, aplicando mais de 100 milhões de dólares em projetos sociais, elaborados e executados em cooperação com a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).

    A temida revolução comunista não se realizou, mas em 31 de março de 1964 ocorreu o golpe civil-militar. Nessa época, Julião foi preso e enviado para o Recife, e no ano seguinte exilou-se no México. Encerravam-se as esperanças das Ligas Camponesas.

    Pablo F. de A. Porfírio é autor do livro Medo, Comunismo e Revolução. Pernambuco (1959-1964) (Ed. Ufpe, 2009) e doutorando em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    Saiba Mais - Bibliografia

    AZEVEDO, Fernando Antônio. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1982.

    CALLADO, Antônio. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960.

    MONTENEGRO, Antonio Torres. “Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em Tempo de Revolução”. In DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

    SANTIAGO, Vandeck. Francisco Julião, as Ligas Camponesas e o golpe militar de 64. Recife: Comunigraf, 2004.