Com perdão da má palavra

Nelson Cantarino

  • Assim como os homens, os livros têm uma história própria. Alguns tiveram uma trajetória tão conturbada e excepcional que se tornaram raros, objetos da cobiça de bibliófilos e destaques dos acervos de arquivos e bibliotecas públicas. Uma dessas raridades já foi o centro de um acalorado o debate: o Exame de Artilheiros, de autoria do engenheiro militar Jorge Fernandes Pinto Alpoim (1700-1765).

    Atualmente são conhecidos sete exemplares da obra: dois fazem parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, um se encontra na Biblioteca Estadual do Rio Grande do Sul; o Real Gabinete Português de Leitura também possui uma cópia e outra está nas mãos de um colecionador particular. A Biblioteca Nacional possui três exemplares, todos catalogados entre as principais obras de seu acervo.

    Durante anos, o livro de Alpoim foi candidato ao posto de primeiro livro a ser editado na América portuguesa. Publicado em 1744, seu objetivo era ser o manual de ensino do recém-fundado terço de artilharia do Rio de Janeiro (1738), local de instrução de oficiais artilheiros e engenheiros, imprescindíveis para a defesa das conquistas portuguesas. Mas será que o livro realmente foi editado na cidade fluminense?

  • Esta questão foi o centro da polêmica entre o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1956) e o jornalista e bibliófilo Félix Pacheco (1879-1935). Taunay e outros defendiam que a obra teria sido impressa em uma tipografia carioca. No entanto, segundo Félix Pacheco, o Exame de Artilheiros foi impresso em Lisboa, no ano de 1744, na Oficina Tipográfica de José Antônio Plattes. Pacheco chegou a esta conclusão após pesquisar cuidadosamente o catálogo do tipógrafo lisboeta, fazendo comparações entre os caracteres tipográficos, estudando as gravuras e a semelhança das ilustrações e das capitais em outros livros da mesma oficina, acabando por estabelecer definitivamente sua impressão em Portugal. Outro aspecto pesquisado foi a autoria das belíssimas gravuras que ilustram o livro. Todas são assinadas por O. Cor., abreviação de Oliverius Cor, gravador francês que trabalhou na capital portuguesa entre os anos de 1744 e 1747.

    Pela leitura dos preâmbulos do livro percebe-se que o Exame de Artilheiros já estava inteiramente redigido em 1742 e, a partir de setembro deste mesmo ano, os originais foram enviados a Portugal para serem submetidos à tríplice censura: a episcopal, a inquisitorial e a da Mesa do Desembargo do Paço, sendo aprovado nas três instâncias.

    No entanto, um último imprevisto contribuiu para fazer do livro uma preciosidade: depois de já impresso, sua circulação foi embargada sob a alegação de que o autor não respeitara a pragmática dos tratamentos devidos às personalidades citadas no texto, conforme determinava o Código Filipino. Os pronomes de tratamento não foram respeitados e algumas das autoridades citadas no texto pediram que os exemplares impressos fossem recolhidos. Polêmicas à parte, alguns exemplares nunca foram confiscados, enriquecendo os acervos de instituições e atiçando a cobiça de bibliófilos.