Perfurações de bala nas paredes das construções em Belém e plantações abandonadas compunham um cenário desolador na província do Pará. Eram as marcas da Cabanagem (1835-1840), revolta popular que abalou as atividades comerciais e a vida social tanto na cidade como no campo, testemunhadas pelo naturalista inglês Henry Walter Bates (1825-1892) em visita ao Brasil em 1848. Diante do panorama sombrio, a economia local tratava de se reerguer. A recuperação veio de um lugar bastante familiar para a população ribeirinha: as águas da Amazônia. Rios, igarapés e lagos eram locais de trabalho de vendedores itinerantes que realizavam um pequeno comércio, o chamado regatão.
Canoas e outros tipos de embarcação tornaram-se verdadeiros armazéns flutuantes, levando os mais variados produtos para moradores ribeirinhos. As mercadorias chegavam pelos rios da região, como Acará, Anajás, Moju, Capim, Guamá, Maguari, Tocantins e Xingu. A população do interior dependia desses pequenos comerciantes, que se abasteciam nos portos das cidades fluviais e faziam chegar às povoações remotas um pouco de tudo. Tecidos, bebidas, ferragens, cereais, paneiros (cestos) de farinha, quinino – remédio para tratar malária – são apenas alguns exemplos do que era vendido.
Em um vaivém diário nos rios, este tipo de comércio ganhava cada vez mais importância. Mas as trocas não eram registradas pelo fisco e as transações não obedeciam a qualquer tipo de regulamentação. Percebendo isso, e tendo a saída da crise econômica como prioridade máxima, o governo decidiu controlar as embarcações e seus tripulantes por meio da cobrança de impostos na década de 1840. Imediatamente, os pequenos vendedores que faziam o comércio de regatão foram afetados.
Eles eram os alvos principais das autoridades, que se empenharam em persegui-los. Afinal, além de fugir dos impostos, os regatões – como eram denominados os vendedores itinerantes – vendiam alimentos e manufaturas contrabandeados. Também acabavam contribuindo para o comércio clandestino como mediadores das trocas de produtos cultivados em pequenas roças ou coletados na floresta pelos agricultores. Isso acontecia porque, em certos lugares, esta troca sem fiscalização tornava-se uma “porta franca para o contrabando especialmente de noite, ocasião em que se desembarcam gêneros extraviados aos direitos com tanto escândalo”, como denunciava um coletor das rendas em um ofício de 1840. Os produtos eram escoados de forma clandestina pelos fundos das casas que beiravam os rios. A maioria das propriedades rurais localizava-se nas margens dos rios, por onde também transportavam a sua produção para o mercado situado na orla de Belém. Porém, para evitar a fiscalização e o pagamento de impostos às coletorias, estes pequenos produtores ou comerciantes atracavam suas canoas em trapiches armados nos quintais das casas ribeirinhas próximas ao cais da cidade.
A atuação em extensa área colaborava para que os regatões escapassem do pagamento de taxas. Ligavam tanto províncias vizinhas, como o Pará e o Amazonas a Mato Grosso e Goiás, como locais mais distantes. Seu serviço ultrapassou até as fronteiras brasileiras, chegando aos territórios amazônicos da Bolívia, do Peru e de Nova Granada (hoje Colômbia). Nessas localidades, era comum o comércio de goma elástica (látex), chapéus de palha, peixe seco, salsaparrilha, aguardente e tabaco.
Hábeis navegadores, os comerciantes itinerantes cortavam caminho por canais pouco conhecidos ou circulavam somente em período de cheia das águas, quando alguns rios se tornavam navegáveis. Assim ficava mais fácil desviar as canoas dos postos de fiscalização e, com isso, subtrair os direitos que seriam pagos pelas mercadorias e pessoas transportadas. Os regatões compravam a borracha dos seringueiros e trocavam por outros produtos necessários ao sustento deles – uma troca que começou na década de 1850, no início da expansão da extração da goma elástica. Além disso, aliavam-se a grandes comerciantes interessados em ampliar seus negócios. Empresas aviadoras de Belém chegaram a possuir canoas de regateio, comercializando diversos produtos de forma ilegal.
Ao mesmo tempo em que os regatões ajudavam a aquecer a economia, sofriam repressão das autoridades. Os vendedores ainda acobertavam em suas canoas escravos fugidos e mantinham relações de trabalho, de comércio e de endividamento com comunidades quilombolas e indígenas. Este era um ponto polêmico, muito criticado pelo governo. A exploração de mão de obra nativa pelos regatões representaria “embaraços” à liberdade comercial, pois muitos índios trabalhavam como remeiros das canoas – uma das formas de saldar suas dívidas –, como afirmou o político liberal Aureliano Tavares Bastos (1839-1875). Mantinham também estreitas relações comerciais com soldados desertores que se abrigavam nas florestas. Na vila peruana de Loreto, vizinha da vila brasileira de Tabatinga, peixes salgados e salsaparrilha saíam das mãos dos desertores para os comerciantes itinerantes, que revendiam os gêneros nas casas aviadoras.
Para evitar a circulação de produtos e mercadorias sem o pagamento dos devidos impostos, as recebedorias, responsáveis pela arrecadação de impostos, e as coletorias, que cuidavam da fiscalização dos produtos e das canoas, atuavam no interior da província. A intenção dos agentes do fisco era controlar a comunicação entre os regatões e os proprietários das casas situadas nas margens dos rios. As leis coibiam qualquer forma de negociação que não passasse pelo fisco.
Mesmo com todas as irregularidades, as autoridades admitiam a importância dos regatões para o abastecimento das vilas distantes. Tavares Bastos recomendava a extinção das taxas e impostos aviltantes que recaíam sobre os regatões, porque rendiam pouco aos cofres das províncias e não compensavam o trabalho gasto em cobrança e fiscalização. Ele chegou a elaborar uma relação dos fortes existentes ao longo do Rio Amazonas, onde poderiam fixar pontos de fiscalização mais precisos para a arrecadação fiscal sem onerar os cofres com novas instalações e empregados. Havia até quem defendesse a adoção do livre comércio, como era o caso de Tavares Bastos. O regatão proporcionava economia de tempo ao pequeno produtor sendo seu intermediário.
No fim das contas, as autoridades estavam preocupadas em promover a navegação a vapor e a ampliação das vendas internas controladas por grandes comerciantes estabelecidos principalmente em Belém. Por isso, acreditavam que as canoas de regateio deveriam fazer apenas um papel intermediário. Sua participação se daria de forma subordinada às grandes casas comerciais, recolhendo os produtos coletados nas margens de afluentes do Amazonas até os portos onde paravam os vapores das companhias de navegação instaladas na região, como a Companhia Fluvial do Alto Amazonas e posteriormente a Companhia Fluvial Paraense, a Companhia Brasileira de Paquetes a Vapor, a Companhia de Navegação do Amazonas (do empresário Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá) e a Amazon Steam Navigation.
Mesmo com tantos empecilhos, estes armazéns flutuantes resistiram ao tempo e continuam até hoje abastecendo as populações ribeirinhas como a principal forma de comércio para localidades mais afastadas dos grandes centros e sem comunicação rodoviária. Diariamente saem embarcações abastecidas de mercadorias diversas dos portos da Palha e do Ver-o-Peso, em Belém, para outros municípios da região. Essa prática pode ser encontrada em outras cidades portuárias da Amazônia, como Macapá e Manaus. Ao que parece, ainda não se encontrou uma forma mais eficiente de atender os moradores desses povoados longínquos.
SIMÉIA DE NAZARÉ LOPES É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ E AUTORA DA DISSERTAÇÃO “O COMÉRCIO INTERNO NO PARÁ OITOCENTISTA: ATOS, SUJEITOS SOCIAIS E CONTROLE ENTRE 1840-1855” (NAEA/UFPA, 2002).
Saiba Mais - Bibliografia
CARDOZO, Alírio e SOUZA, César Martins de. (orgs). Histórias do Xingu: Fronteiras, Espaços e Territorialidades (Séc. XVII – XXI). Belém: Editora da UFPA, 2008.
GOULART, José Alípio. O Regatão: mascate fluvial da Amazônia. Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1968.
SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo: Editora T. A. Queiroz, 1980.
TAVARES BASTOS, A. C. O Vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatísticas, produção, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas. 3ª ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1975. (Brasiliana, v. 106).
Comércio corrente
Siméia de Nazaré Lopes