Comida que vem de longe

Kátia Maia Flores

  • Em meio à precariedade dos primeiros assentamentos e arraiais a se fixarem em um novo território, a culinária não costuma merecer atenção especial. A comida é improvisada, e os colonos dificilmente se dedicam a produzir algo como um livro de receitas. Para conhecer detalhes da alimentação no distante Tocantins durante o seu povoamento na primeira metade do século XIX, é preciso recorrer aos diários de estrangeiros e viajantes. Os relatos de quem passou pela região revelam ingredientes de uma sociedade em construção, ao sabor da mestiçagem.  
     
    Peixe acará desenhado por Jacques Burkhardt, no século XIX (Foto: Fundação Biblioteca Nacional)Nos sertões da Colônia, a penetração inicial se deu por conta dos paulistas, os conhecidos bandeirantes. Foi na primeira metade do século XVIII que eles estenderam as fronteiras meridionais cada vez mais para o interior, na caça de índios e na busca do ouro. Começava ali uma ampla interação cultural, específica dos sertões, em que o conhecimento indígena era fundamental para a sobrevivência do invasor branco. 
     
    Em 1722, a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, para as minas de Goiás já havia perdido mais de 40 homens pela penúria da fome e das condições da viagem, quando o bandeirante Diogo Soares prometeu várias novenas a Santo Antônio “para que nos deparasse algum gentio que, conquistado, nos valêssemos dos mantimentos que lhe achássemos, para remédio da fome que padecíamos”.
     
    Foi com esse caráter imprevidente e aventureiro que se formaram os primeiros núcleos populacionais. A bagagem do viajante era formada por gêneros não perecíveis e artigos de primeira necessidade: ouro e prata, espingarda, pólvora, tachos, anzóis e linha para caças e pescas ao longo do caminho. Os bandeirantes eram obrigados a aprender com os índios sobre os meios elementares de sobrevivência nos sertões, onde os caminhos eram precários, quando não inexistentes, fazendo com que grande parte do necessário para a culinária e para a própria vida tivesse de ser produzida localmente. 
     
    A alimentação se adequava às peculiaridades da região: o clima, as distâncias e a cultura híbrida construída pela junção de diferentes hábitos, próprios de mineradores, sertanejos, indígenas e escravos africanos. Os colonos burlavam a legislação portuguesa de não produzirem roças nas imediações das minas para garantir a sobrevivência dos que ali trabalhavam. Ingredientes como mandiocas, milhos, feijões eram cultivados nas vizinhanças dos assentamentos.
     
    O fogão nas residências era a lenha, feito de taipa, uma mistura de madeira roliça e barro, ou ainda, para os mais sofisticados, de adobe. Nas viagens ou nos assentamentos, usava-se com frequência a trempe (tripé) improvisada sobre pedras. Os utensílios eram panelas de ferro, barro, cabaças ou gamelas talhadas na madeira. Mesmo nos arraiais, a precariedade e a simplicidade eram as mesmas. Os viajantes falam do arroz serigado (arroz com carne seca), carne seca com farinha e frango em ocasiões especiais, sendo estes exemplos da simplória culinária praticada na região.
     
    Os alimentos procediam de fazendas ou sítios situados próximos aos arraiais de Porto Imperial, Natividade, Arraias, entre outros. Eram transportados em cargueiros e vendidos diretamente aos moradores ou aos taverneiros que compravam as mercadorias para revender. Grande parte dos alimentos provinha dos próprios quintais, onde eram criados também porcos e galinhas. Os mais utilizados eram feijão, toucinho, legumes, carne-seca (raramente fresca), galinha, arroz, açúcar nas frutas em conserva, mandioca e milho. Mais rica era a variedade de frutos e cocos oriundos do cerrado, que forneciam generosamente os regalos dos homens sertanejos: buriti, murici, araçá, bacaba, mangaba, babaçu, macaúba, pequi, cajá e tantos outros foram incorporados aos hábitos alimentares da população. 
     
    O certo é que o abastecimento dos gêneros de primeira necessidade era precário e irregular. Os produtos de outras regiões eram incomuns e chegavam raramente, vindos principalmente do Pará pelo rio Tocantins ou pelos antigos caminhos de Goiás, o que inflacionava muito a mercadoria. O sal era o principal ingrediente culinário que dependia unicamente de abastecimento externo. Quando por alguma razão o fornecimento do sal não acontecia, toda a população de ressentia de sua falta. Além do impacto na culinária, a falta do sal talvez tenha sido responsável pela grande incidência do bócio (“papeira”) na população (doença que atinge a glândula tireoide). 
     
    Nas regiões que margeavam os rios, o peixe era ingrediente fundamental na dieta da população. À medida que se expandiu a navegação, tornou-se também um gênero indispensável à equipagem das viagens. Durante mais de um século, o rio Tocantins foi o principal canal de ligação do norte da Província de Goiás com o restante do Brasil. Através dos botes que singravam o rio, em viagens que duravam em média sete meses entre a vila de Palmas e Belém, no Pará – sendo um mês na descida e seis meses subindo o rio – transitavam as mais diversas mercadorias, possibilitando trocas econômicas e culturais entre sertão e litoral.
     
    Mapa de Antônio Cochado, da metade do XVII, mostrando litoral entre São Luís e Belém. (Foto: Fundação Biblioteca Nacional)As margens do rio Tocantins eram escassamente povoadas, e em grande extensão do percurso os viajantes não dispunham de nenhum apoio ou porto de abastecimento. Com isso, estabeleceu-se uma alimentação improvisada e por vezes frugal, dadas as condições da viagem, e representativa, em parte, de hábitos mais gerais adotados pelas sociedades vizinhas. Afinal, o abastecimento e o fornecimento dos gêneros que compunham a equipagem da viagem eram fornecidos localmente.
     
    A mercadoria que abastecia a embarcação no momento da saída era composta de gêneros previamente preparados. A carne de sol dependia da aquisição de reses que eram mortas, retalhadas e devidamente salgadas. As partes impróprias ao processo de salgamento e secagem eram consumidas imediatamente, e com diferentes propósitos. O couro era tratado para vendagem, o sebo e as tripas serviam para a fabricação de sabão ou linguiças, os miúdos para consumo imediato. Quase nada era inutilizado. A carne não obedecia à sazonalidade, como era o caso da mandioca, dos legumes, das verduras e dos frutos do cerrado. A farinha devia ser encomendada com antecedência para ser reservada por algum produtor. Os frutos e os legumes, além de sazonais, eram perecíveis: só embarcavam em maior quantidade na forma de doces e compotas. No mais das vezes, eram os taverneiros dos portos locais que os forneciam para consumo mais imediato. Essas especificidades limitavam a vida do viajante. Diante do insuficiente abastecimento das embarcações, a tripulação precisava de sorte e destreza em pescar e caçar. 
     
    O que garantia as viagens fluviais era o sistema comercial portuário, que reunia produtos variados das imediações, vendidos ou trocados pelos viajantes. Com isso, havia circulação de mercadorias que vinham dos portos marítimos, bem como dos produtos locais que circundavam os portos fluviais. Produtos como aguardente de cana, fumo, rapadura, farinha, mandioca, abóboras e doces eram mais comuns nas viagens, pois eram do uso geral da população, e seu excedente era comercializado ou trocado por manufaturados e sal.
     
    Os problemas alimentares enfrentados pelos barqueiros não diferiam em grande escala dos enfrentados pela população como um todo, que vivia na dependência de uma produção autossustentável fornecida pelos sítios e quintais, ou de gêneros cujo abastecimento acontecia através das estradas mal cuidadas que ligavam a região aos demais centros do país, ou da navegação dos rios Tocantins e Araguaia.
     
    A condição precária da alimentação persistiria nos séculos seguintes, mas agora como um reflexo da situação de abandono e pobreza que moldou secularmente a história do Tocantins. 
     
    Kátia Maia Flores é professora da Universidade Federal do Tocantins e autora de Caminhos que andam: a navegação fluvial no interior do Brasil (UCG, 2010), e Estrangeiros no Tocantins do século XIX (Nagô, 2013).
     
    Saiba Mais
     
    SILVA, Francisco Ayres da. Caminhos de outrora: diário de viagens. Porto Nacional: Prefeitura Municipal, 1999.
    SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “Culinária Colonial”. In: Oceanos, n. 42, 2000.
    SILVA, Paula Pinto. Farinha, feijão e carne seca. Senac: São Paulo, 2005.