Em 8 de abril de 1546, o Concílio de Trento declarou herética a tese sola fide et sola scriptura (“só com a fé e a escritura”), da teologia reformada de Martinho Lutero. A tese afirmava que o clero e as cerimônias visíveis da Igreja Católica deviam ser substituídos pela leitura individual da Bíblia: “Tudo aquilo que não há nas Escrituras é simplesmente uma adição de Satã”. Negando-a, o Concílio reconfirmou os ritos, sacramentos, ministérios, magistério e governo da Igreja. Em 17 de junho do mesmo ano, ainda decretou que a pregação oral feita por oradores inspirados pelo Espírito Santo era o modo privilegiado de divulgar a fé. Em 1563, o decreto foi reconfirmado.
Outra tese de Lutero, a lei do pecado, afirma que o pecado original corrompe a natureza humana, eliminando da consciência a luz natural da Graça. A ausência do conselho da Graça incapacita os homens para distinguir o bem do mal. Para controlar a anarquia decorrente, Deus manda o rei, que reina por “direito divino”, dispensando a autoridade do papa. No Concílio, o cardeal Bellarmino determinou que Deus certamente é “Causa universal” de todo poder, mas não “causa próxima”: o poder do rei não é doação direta de Deus, mas resultado de um pacto social. O Concílio decretou que, apesar do pecado, a lei natural está presente na consciência humana, refletindo a lei eterna de Deus; logo, as normas positivas instituídas pelos homens para governar devem ter a autoridade e a legitimidade que evidenciam a lei natural conhecida por todo indivíduo em sua consciência como presença da lei de Deus. As leis humanas são legítimas e sagradas quando refletem o ordenamento ético do poder pela luz natural da Graça.
Os tratados dos jesuítas Giovanni Botero (Da razão de Estado, 1586) e Francisco Suárez (Sobre as leis, 1612, e Defesa da fé, 1613) doutrinaram o pacto social como “pacto de sujeição”, pelo qual a comunidade se aliena do poder, transferindo-o para a pessoa imortal do rei. A união das vontades de todos os homens – como vontade coletiva subordinada ao rei pelas leis legítimas do pacto de sujeição – visa o “bem comum” do corpo político. Para combater a tese maquiavélica que define a sociedade como “guerra de todos contra todos”, Botero prescreveu o conceito de “interesse”, segundo o qual os indivíduos devem obter e manter a tranquilidade da alma por meio do controle dos apetites para atingir seus fins particulares. Subordinados no pacto, não devem desejar ser mais (ou menos) do que o privilégio determina para sua posição social. Controlando as paixões, devem esforçar-se para garantir a concórdia, definida como fundamento da paz e do amor do “bem comum”.
O Concílio foi encerrado em 1563. Em setembro de 1564, todos os seus decretos foram declarados leis do reino de Portugal, passando a ser transmitidos no ensino ministrado pela Companhia de Jesus nas universidades e colégios do reino, nos colégios do Estado do Brasil e, a partir de 1616, do Estado do Maranhão e Grão Pará. Obviamente, a hierarquia continuou sendo abalada pelas iniciativas de membros do corpo político que tendiam à autonomia, desagregando a unidade do todo subordinado. Desde o Concílio, a oratória sacra teve a função teológico-política de fazer os súditos passarem das palavras ouvidas da boca do pregador para a ação de subordinar voluntariamente seus interesses particulares ao “bem comum”.
Na segunda metade do século XVI, os jesuítas definiram as letras e as artes como theatrum sacrum, teatro sacro, que encena a sacralidade dos dogmas teológico-políticos decretados no Concílio. A partir de 1599, quando foi publicado o Ratio Studiorum,a ordenação dos estudos ministrados pela Companhia de Jesus,o curso de Retórica dos seus colégios sistematizou o ensino da erudição, dos preceitos e dos estilos da oratória. Textos de autoridades antigas foram retomados, principalmente a Retórica, de Aristóteles; a Retórica para Herênio, do Anônimo romano; as Partições oratóriase oDe oratore, de Cícero; a Instituição oratória, de Quintiliano, além de tratados gregos de retórica de Hermógenes, Aftônio, Demétrio de Falero, Dionísio de Halicarnasso, Theon de Alexandria, Longino etc., traduzidos e editados na Europa no início do século XVI.
Nos usos da retórica feitos segundo a oposição contrarreformista vidabeata xvidalibertina, Santo Agostinho e mais padres e doutores da Igreja, como São Jerônimo, foram autoridades teológicas dedicadas à moralização da aprendizagem da retórica e da prática das técnicas oratórias. O ensino e a pregação sacra realizada pela Companhia de Jesus divulgam o modelo civilizatório do “governo das almas por meio da palavra” exposto por Cícero no Orator. Nele, os estilos usados na pregação das virtudes da subordinação tendem a dominar os efeitos ornamentais. É o caso da clareza da disposição do discurso, proposta em termos de utilidade didática; ou da sublimitas in humilitate, o sublime no humilde, que Bernardo de Claraval tinha doutrinado como o estilo mais adequado para revelar a presença sublime de Deus santificando as coisas humildes do mundo. As diretivas do Concílio determinaram que o novo tipo de pregador deveria fundir, na invenção do sermão e na ação de pregá-lo, os modelos do orador ciceroniano e do doutor agostiniano. Ou seja, a Retórica e a Teologia, sempre subordinando a primeira à segunda, para fazer a palavra não só eloquente e eficazmente persuasiva, no sentido ciceroniano, mas, principalmente, uma revelação substancial da sua Causa Eficiente, Deus, segundo as duas fontes autorizadas pelo Concílio, a tradiçãoe as Escrituras, contra Lutero, Calvino, Maquiavel e outros heresiarcas. Em uma carta de 1659 para o rei D. Afonso VI, Vieira evidencia a função contrarreformista da oratória sacra, afirmando que “os primeiros e maiores instrumentos da conservação e aumento dessa monarquia são os ministros da pregação e propagação da Fé, para que Deus a instituiu e levantou no mundo”. No texto “Defesa do livro intitulado 'Quinto Império'", de 1665-1666, declara que o papa e os pregadores evangélicos que agem na América como enviados do papa são “instrumentos imediatos” da conversão do mundo que contam com o apoio de um “instrumento temporal e remoto”, um “imperador zelosíssimo”, que os protege.
O sermão sacro é um gênero popular público. No caso, “público” significa a totalidade do corpo político definida como totalidade de homens subordinados ao “bem comum” do Estado. Incluído nela, cada ouvinte “deve”reconhecer sua posição subordinada. O sermão reproduz o que cada ouvinte já é, como membro subordinado do corpo místico do Estado, determinando que “deveser”e persuadindo-o apermanecer sendo o que já é. Assim, é teatralização corporativista que figura para o ouvinte particular o próprio “público” como totalidade jurídico-mística de homens integrados em ordens e estamentos subordinados. Feita segundo esses pressupostos, a oratória de letrados coloniais, como José de Anchieta, Eusébio de Matos, Antônio do Rosário e Antônio Vieira, produz uma temporalidade providencialista determinada pela metafísica escolástica. Não conhece as unidades teóricas da Literatura e da Arte produzidas no mundo burguês a partir do final do século XVIII. Para lê-la, deve-se considerar que sua linguagem substancialista não é a das concepções linguísticas modernas que afirmam a arbitrariedade e a imotivação do signo. O pregador costuma recorrer a autoridades canônicas da Patrística e da Escolástica para interpretar a história, estabelecendo concordâncias analógicas entre coisas, homens e eventos do Velho Testamento com os do Novo, e coisas, homens e eventos do Império. A concordância é “figura” da Vontade divina que escolhe Portugal como a nação universalizadora da verdadeira fé contra as heresias de infiéis e a idolatria de gentios. A interpretação é feita com o ductus, relação da interpretação da matéria com a circunstância empírica, efetuando o consilium, conselho, sobre questões relativas ao “bem comum”. O conselho evidencia o “providencialismo”, postulação de que na história se lê o desígnio da Vontade divina; e o “profetismo”, prognóstico do futuro já revelado em coisas, homens e eventos do passado e do presente. Em todos os casos, fica evidente a determinação do Concílio de Trento: o orador cristão não deve buscar sua própria glória, mas a de Jesus Cristo, a quem deve desejar ter sempre frente aos olhos, buscando a edificação de seu corpo místico que é a Igreja unanimemente católica.
João Adolfo Hansené professor da Universidade de São Paulo e organizador, junto com Adma Fadul Muhana e Hélder Garmes, de Estudos sobre Vieira (Ateliê Editorial, 2011).
Saiba Mais- Bibliografia
LOPES, Eliane Marta Teixeira et al (Org). 500 Anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.
PÉCORA, Alcir. “Sermões: O modelo sacramental”. In: Antônio Vieira: Sermões, tomo1.São Paulo: Hedra, 2000.
PÉCORA, Alcir. “Sermões: A pragmática do mistério”. In: Antônio Vieira: Sermões, tomo 2. São Paulo: Hedra, 2001.
Como e por que pregar
João Adolfo Hansen