Comparação inédita

  • A aparência de um documento é capaz de mascarar a riqueza do seu conteúdo. Por ter uma apresentação pouco atraente, várias preciosidades podem ficar no fundo de gavetas. Mas é justamente numa dessas gavetas que se encontra O pós-modernismo: José Lins do Rego e Graciliano Ramos, documento de 160 páginas datilografado pelo historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999) –, que tem seu centenário comemorado em diversas regiões do país ao longo deste ano [Ver seção “Em Dia”]. O texto integra a coleção de Sodré, guardada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

    Dividido em três partes, na primeira Sodré compara a produção literária, as experiências e as atividades intelectuais de José Lins do Rego (1901-1957) e de Graciliano Ramos (1892-1953). Nas seguintes, o historiador se debruça, separadamente, sobre as obras dos autores. Apesar de o próprio Sodré dizer que o texto seria uma reavaliação de escritos já publicados em introduções de livros e em artigos de jornal, trata-se de um documento inédito no formato livro, segundo a antropóloga Luitgarde Cavalcanti.

    Não se sabe ao certo o ano de produção do texto, mas é possível localizá-lo entre a segunda metade da década de 1970 e o início da década de 1990: o arquivo foi entregue à Biblioteca Nacional em 1995 pelo próprio Sodré, e há no texto uma referência de 1975, o que já delimita em parte o período. Além disso, há críticas ao neoliberalismo e ao mercado editorial, em particular ao best-seller, caras ao autor a partir dos anos 1980.

    Sodré apresenta seus personagens destacando as oposições entre eles: de um lado, o extrovertido José Lins do Rego, ávido pelo reconhecimento público, com uma carreira bem-sucedida que contava com o apoio dos críticos literários; de outro, o velho Graça – como era chamado pelos amigos – de poucas palavras, isolado, de vida difícil, e que, por não fazer concessões, só seria plenamente reconhecido após sua morte.

    O historiador esclarece que não tinha relações tão próximas com Lins do Rego e que, em contrapartida, nutria simpatia por Graciliano, a quem qualifica como “um perseguido, vítima da insânia ditatorial”. Sobre o trabalho dele, diz: “Graciliano manteve esses traços de modéstia, de preocupação com a melhora do que ia escrevendo, de insatisfação com o que escrevera”. Ironicamente, nesta breve exposição, Sodré acaba revelando a própria relação com seus escritos, o que é comprovado pelas inúmeras retificações presentes neste documento. Além disso, há correções marcadas de formas diferentes (lápis, canetas azul e vermelha), o que indica que o autor releu várias vezes o texto.

    Ele salienta que a principal qualidade de Rego é a sua narração, e nela a memória funcionaria como um recurso amplamente utilizado. Afirma ainda que, toda vez que Rego pretende afastar-se de suas reminiscências, a qualidade de sua narrativa cai, citando como exemplos a personagem Maria Alice, do romance Bangüê, e o livro Riacho doce. Segundo Sodré, a personagem Maria Alice não construiria uma narrativa tão forte quanto outros personagens de sua obra. No caso de Riacho Doce, a distância do universo narrado fez com que José Lins do Rego não demonstrasse sua competência como narrador.

    Já em Graciliano, Sodré aponta a linguagem e a construção de sua trajetória como escritor a partir do próprio domínio da literatura. Caetés, por exemplo, seria o início de um apuro formal alcançado em São Bernardo e levado ao extremo em Angústia e Vidas secas. Para afirmar seu ponto de vista, Sodré chega a defender Caetés das críticas que o qualificam como um “romance menor” desse autor, reconhecendo a qualidade do livro e dizendo que este foi um estágio necessário ao escritor. Destaca ainda que “sua constante única é a relutância em aceitar a autoridade; não há quase hierarquia nas atividades rotineiras e habituais, patrões e empregados confundem-se, os traços que os distinguem são tênues e imprecisos”, contrastando com o ambiente extremamente hierarquizado da obra de Lins do Rego. Além disso, contrapõe o regionalismo e o aspecto documental deste escritor à universalidade e à perfeição formal de Graciliano.

    É evidente que, em uma primeira leitura, identifica-se o tema do documento como literatura. Não é propriamente um erro. Porém, por meio de uma análise mais cuidadosa do texto, percebe-se que Sodré adota como ponto de partida a literatura para tratar de um tema caro ao pensamento marxista e à sua orientação ideológica: o papel dos intelectuais, sobretudo em tempos de crises e perseguições. Segundo ele, os debates políticos e culturais estavam presentes na literatura: “As ditaduras professam, por justos motivos, profundo horror à cultura, em qualquer de suas manifestações e com destaque para as que se utilizam da palavra, pela penetração que esta alcança e pelo seu poder de convencimento”.