Buenos Aires e as autoridades espanholas corriam perigo. Os indícios de uma conspiração chegaram aos ouvidos do alcaide Matín de Álzaga, que resolveu abrir um inquérito sobre o assunto: moradores de origem francesa e seus escravos estariam se reunindo e brindando em nome da “liberdade”. Para as autoridades, esta palavra era subversiva demais.
Dois anos antes, em 1793, a Revolução na França levara à guilhotina o rei Luís XVI, e os escravos de sua principal colônia açucareira tinham se levantado e conduzido uma guerra que os levaria à independência, adotando para seu país o nome de Haiti. Nada parecia mais assustador para o Império espanhol do que a disseminação de tal efervescência. Seus territórios também viviam um período de complôs e conspirações políticas, que frequentemente envolviam o questionamento da ordem colonial.As autoridades permaneciam atentas ao potencial de pensamentos considerados perigosos, com base em delações sobre ameaças imaginárias ou iminentes contra a ordem constituída. O clima de desconfiança instalou-se em várias cidades importantes do Império espanhol. No topo das suspeitas estavam as notícias vindas da França revolucionária.Em Buenos Aires, naqueles primeiros meses de 1795, o inquérito instaurado contra franceses e escravos sugere que o alcaide chamou a depor qualquer um que tivesse falado em público alguma coisa sobre a conspiração. Até que encontrou um suspeito que atendia às suas expectativas: Luís Dumont, um padeiro francês que gostava de reunir conterrâneos em sua casa. O processo judicial começa com o interrogatório de seu escravo, Pedro. Perguntado sobre a conduta de seu amo e sobre quais pessoas frequentavam a casa de Luís Dumont, se realizavam brindes pela França ou pela liberdade e “pela Assembleia”, Pedro respondeu afirmativamente a estas questões e forneceu uma lista de suspeitos: um padeiro, um alfaiate, um sapateiro, um relojeiro, um mordomo, um cabelereiro e um comerciante. Todos foram levados para a prisão do cabildo, na qual também se realizariam os interrogatórios e se aplicariam os tormentos.A relação entre os franceses e a suspeita de complô é fácil de entender. Mas qual seriam as motivações dos escravos? Muitos andavam falando pela cidade que, depois que os franceses tomassem o controle, eles estariam livres. O próprio Pedro disse que seu senhor havia lhe prometido liberdade depois da Semana Santa, tendo implícito o rumor que corria de que a revolta estaria marcada para esse período.Negros e escravos passaram a ameaçar abertamente os brancos e seus senhores. O escravo da Igreja de São Francisco, cujo nome não aparece no processo, é mencionado no testemunho de Gervácio, negro, peão da alfândega. Este relatou que estava na taberna com o mulato Martín e outro mais quando chegou esse da Igreja de São Francisco, provavelmente um confrade, e apoiando-se no balcão, disse que agora veriam os espanhóis do que eram capazes eles, os negros, junto com os franceses. Gervácio teria pedido para não falar assim e em resposta o “negro” lhe descarregou um garrote que levava. Também a escrava Pascuala teria dito, em presença de sua senhora, que “iam vê-la vestida com luxo”. O francês Barbarin, pequeno comerciante, dono de um armarinho e síndico na confraria de São Benedito de Palermo, teria renunciado ao cargo devido às fofocas que o acusavam de querer sublevar os negros que costumavam frequentar sua casa. A cidade inteira falava de “escravos e franceses”.
Afixados em locais públicos, pasquins anônimos faziam proliferar o clima de complô. Um deles dirigia-se ao vice-rei do Rio da Prata, Nicolás Arredondo: “Se os franceses não apresas/ Em todo o teu vice-reino/ Serás o mais insensato/ E aparecerás nas gazetas/ Olha que há diferentes seitas/ Entre esta indigna nação/ Teme uma sublevação/ Entre eles e os escravos/ Que eles unidos e falados/ Ah de ti e de tua nação”. Era uma resposta a outro pasquim, que expressara “manifestado apoio” aos acontecimentos da França. Este foi citado no processo judicial, e talvez tenha sido o motivador de todo o conflito: continha apenas três palavras, mas assustadoras – “Viva la livertad”.As casas dos complotados foram revistadas com o maior cuidado na busca por papéis, livros e qualquer escrito que pudesse conter os planos, as ideias e as fontes de inspiração subversivas. Na casa do relojeiro Santiago Antonini foi encontrado um papel pequeno entre os lençóis da cama, no qual se lia “Viva la livertad”, semelhante àquele que aparecera afixado. A descoberta gerou grande entusiasmo no alcaide, mas o papel foi tudo o que se achou depois de revirada toda a casa.Álzaga não poupou os investigados da aplicação de tortura, como foi o caso de José Díaz, três vezes submetido ao “tormento de cordas”. Sem encontrar provas que comprovassem a sua hipótese, o obcecado alcaide tornava-se mais e mais seguro de que a conspiração era muito sigilosa e bem tramada.
Se a princípio se uniu na denúncia e na condenação dos franceses e dos escravos, com o tempo a pequena cidade, de 25 mil habitantes, mostrou-se arrependida. Passados alguns meses, as prisões continuavam e pessoas comuns – algumas colaboradoras do alcaide que levavam informações ouvidas na rua – eram detidas para longos interrogatórios. Os vizinhos de Buenos Aires só queriam que as detenções e as investigações acabassem.Depois de onze meses presos, e apesar dos argumentos do fiscal do crime de que reuniões e brindes não constituíam prova suficiente para sustentar a acusação de conspiração, os suspeitos foram condenados ao desterro: deviam ser enviados à Espanha no Navio de Registro, mas como as comunicações atlânticas entre Espanha e América estavam difíceis, os “conspiradores”, ao que parece, ficaram por ali. Juan Barbarin, Carlos José Bloud, Juan Boriene, Luís Dumont, Juan Antonio Gallardo e outros aparecem no recenseamento realizado no ano de 1807 em Buenos Aires como antigos moradores. E os escravos continuaram escravos.Depois da sentença, um dos processados, o cabeleireiro Borienne, ainda se apresentou declarando que os onze meses de prisão o deixaram na miséria. Afirmou que teve de pagar por uma hospitalização quando era prisioneiro e solicitou que lhe devolvessem os documentos e dois pesos que portava quando foi levado para a cadeia. Com o dinheiro pretendia comprar sapatos, já que estava descalço, evidenciando o estado de miséria em que tinham ficado os acusados, que viviam de seus ofícios, depois de quase um ano na prisão.O episódio demonstrava as fraquezas do Império espanhol. As ideias “subversivas” e o descontentamento estavam por toda parte. Apareciam como fantasmas nos setores mais temidos: entre os escravos, os franceses ou, como acontecido 15 anos antes, entre os índios, quando José Gabriel Condorcanqui Noguera, conhecido como Tupac Amaru II, conduziu a maior revolta contra o sistema colonial espanhol. O início do fim do sistema colonial se anunciava no Rio da Prata.No final do processo, o alcaide Martin de Álzaga foi motivo de zombaria na cidade. Curiosamente, anos depois, ele se converteria em herói da Reconquista de Buenos Aires, participando ativamente de sua defesa contra as invasões inglesas, em 1806 e 1807. Mas, em 1812, foi denunciado como um dos responsáveis por uma conspiração contra as autoridades crioulas constituídas, no decorrer do processo de independência do Rio da Prata, e fuzilado junto com outros condenados. No processo que o levou ao patíbulo, aparece em mais de uma oportunidade a menção ao escravo que delatou a conjuração: o negro Ventura Feijoo. Entre as anedotas que se contam, consta que, quando o cadáver de Álzaga foi exposto em praça pública, um homem beijava a madeira ensanguentada na qual tinha sido dependurado o corpo, enquanto sorridente repartia moedas de prata – seria um dos franceses torturados pelo outrora poderoso alcaide de Buenos Aires.Maria Verónica Secreto é professora na Universidade Federal Fluminense e autora de Fronteiras em movimento: História Comparada Argentina e Brasil no século XIX (Eduff, 2012) e Negros em Buenos Aires (Mauad, 2013).Saiba maisJOHNSON, Lyman L. Workshop of Revolution. Plebeian Buenos Aires and the Atlantic World, 1776-1810. Durham, North Carolina: Duke University Press, 2011.
Complô da liberdade
Maria Verónica Secreto