Conexão sino-portuguesa

  • A frase do mês

    “A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza.”

    Gilberto Freyre (1900-1987), escritor pernambucano, decifrando a alma nacional.

    Problema no juízo

    Depois de publicado, o texto não pertence mais ao autor. Às vezes ele pode ganhar interpretações diferentes da do escritor ainda no processo de edição. Veja o caso do livro Poesias completas, de Machado de Assis, de 1902. A Livraria Garnier, que editou a obra, era muito cuidadosa com a preparação dos seus livros, que eram impressos na França. Mas nem todo o zelo com o trabalho foi capaz de evitar erros. Em um trecho do prefácio, onde Machado havia escrito “cegara o juízo”, o tipógrafo francês trocou a letra e da palavra “cegara”por a, produzindo uma expressão das mais grosseiras. O engano seria corrigido logo depois, à caneta, ainda na primeira edição, com o livro já em circulação. Os exemplares com o escorregão tipográfico, é claro, passaram a ser os mais preciosos. E Machado de Assis, quem diria, se tornou, involuntariamente, autor de uma expressão desprovida da polidez habitual.

    Em O bibliófilo aprendiz, de Rubens Borba de Moraes.

    Carinho sino-português

    Um cheiro pode valer mais do que um beijo no Nordeste do Brasil. Uma das mais populares manifestações de afeto entre nós, o ato de procurar o odor de alguém querido pode ter uma origem bem longínqua. O beijo foi difundido no Ocidente por gregos e romanos, e foi propagado ainda na Antiguidade e na Idade Média, mas não era conhecido nas Américas até a chegada dos europeus. Já o “cheiro”é conhecido apenas entre três grupos: os brasileiros, os esquimós e os chineses. Segundo Wenceslau de Moraes, militar português com serviços prestados no Oriente, em sua obra Traçosdo Oriente (1893), “os chineses não dão beijos (...) ou dão-nos de uma maneira muito diferente da nossa, sem o uso dos lábios, mas aproximando a fronte, o nariz, do objeto amado, e aspirando Foto: acervo iconografiadetidamente”. É possível, portanto, que os lusitanos tenham trazido do distante Oriente mais do que louças e especiarias: um jeito arretado de se cumprimentar com “um cheiro” em vez de “um beijo”.

    Em Superstição no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo.

    O charme de Juscelino

    Pé de valsa, simpático, galanteador. Uma das presenças mais lembradas no cargo maior da República brasileira, Juscelino Kubitschek, que ocupou a Presidência entre 1956 e 1961, usava todo o seu charme como ferramenta de negociação política. Em 1956, logo no primeiro ano do seu governo, JK precisou enfrentar uma revolta na ainda capital federal, o Rio de Janeiro. A população carioca, com o apoio dos estudantes ligados à UNE, saiu às ruas em um violento protesto contra o aumento das passagens dos transportes públicos. O presidente chamou o líder dos estudantes, Carlos Veloso de Oliveira, para uma conversa e, habilmente, ofereceu ao rapaz a cadeira reservada ao presidente da República – para que o moço tivesse o ponto de vista de quem governa o país. Para início de conversa, Juscelino lançou o apelo: “Carlos, me ajude a salvar o regime”. No fim da conversa, também chegava ao fim a revolta.

    Em www.projetomemoria.art.br

    Caio Prado Júnior / Acervo Danda PradoPlanos frustrados
    Além de grande historiador, Caio Prado Júnior (1907-1990) foi também um incansável homem político. Comunista convicto, ele sofreu na pele a repressão desencadeada em momentos mais autoritários da nossa história. Ainda bem jovem, foi perseguido e preso durante o governo Vargas (1930-1945). Encarcerado com outros intelectuais em São Paulo, Prado Júnior planejou uma fuga, recorrendo à ajuda da esposa, que foi até uma casa vizinha ao lugar de confinamento e pediu à dona da residência para espiar o marido pela janela. A incursão serviu para que ela fizesse um desenho da área, o que ajudou o marido a planejar um túnel e uma rota de fuga. O plano deu certo para muitos dos detentos – entre eles o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977). Mas, na véspera da fuga, em 1937, o então futuro autor de Formação do Brasil Contemporâneo (1942) adoeceu e acabou transferido. O historiador, no entanto, conseguiria a anistia tempos depois.

    Natália Pesciotta em Almanaque Brasil.