“Uma perfeita célula comunista em funcionamento”. Assim o promotor militar da Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar referiu-se às atividades de um grupo de presos políticos internos na Penitenciária Regional de Linhares, em Juiz de Fora (MG).
Documentos clandestinos apreendidos com parentes dos detentos indicavam, segundo o acusador, que os presos promoviam “agitação e propaganda, nos moldes internacionais comunistas” numa instituição penal do regime militar. A denúncia, feita em 23 de julho de 1970, causou temor às autoridades. O resultado foi a adoção de regras disciplinares mais rígidas na penitenciária. Mas em Linhares, quanto mais a opressão aumentava, mais os presos políticos recorriam a inusitadas formas de resistência e denunciavam as arbitrariedades cometidas nas cadeias brasileiras.
Dados do projeto Brasil: Nunca Mais informam que mais de sete mil pessoas foram acusadas judicialmente entre 1964 e 1979. Esses números cresceram desde 1968 com o AI-5, que, entre várias medidas, pôs fim ao habeas corpus para acusados de crimes contra a Lei de Segurança Nacional. Estima-se que, no início da década de 1970, cerca de cinco mil presos políticos aguardavam julgamento no Brasil.
Anexado ao processo da 4ª C.J.M., o panfleto Até sempre 3, feito na penitenciária, trazia na primeira página o título “A Ditadura no Banco dos Réus”. O manuscrito de dez páginas, produzido em papel de seda, narrava o julgamento de alguns integrantes da luta armada mineira que durou 27 horas. Com depoimentos de vários dos réus, resumia os acontecimentos da audiência alertando que, apesar das ameaças de perseguições futuras pela repressão, “os processados, numa autêntica postura de comunistas e revolucionários, assumiram perante a História o papel de Promotores, apresentando para oportuno julgamento denúncia dos crimes cometidos contra o povo pela gorilagem”, segundo as palavras dos autores do material. O panfleto teria sido distribuído entre militantes de esquerda e foi encontrado camuflado nos pertences de um visitante na saída da instituição.
Nos interrogatórios dos presos políticos, foi afirmado que textos similares haviam sido anexados num mural do refeitório da penitenciária. Mas um líder estudantil, ao ser indagado sobre o significado do nome do documento, disse que pensava significar somente “Até sempre, uma saudação, e o 3, o número do exemplar”. O número 3 preocupava os investigadores do caso: haveria então duas edições anteriores? Até o fim do processo, não ficou esclarecido para a Justiça Militar se existia uma série e onde estariam os outros exemplares.
Objetos de denúncias como o panfleto punham em xeque declarações oficiais que negavam a existência de tortura e maus-tratos a presos políticos no país. Entre os mais conhecidos estava o Documento de Linhares, de 1969, assinado por 12 membros da organização Colina, presos na Penitenciária de Juiz de Fora. Ficou conhecido com esse nome por ter sido produzido em Linhares, apesar de não apresentar relatos de torturas ali cometidas. Com grande repercussão nas esquerdas, o documento levou ao conhecimento geral a reação detalhada do corpo do torturado a métodos como “hidráulica” – injeção de água nas narinas do preso numa simulação de afogamento. E denunciou inclusive a aula de tortura promovida na Polícia do Exército da Guanabara para cerca de 100 oficiais das Forças Armadas.
Considerado o primeiro relato estruturado sobre as agressões cometidas pelo regime militar, o Documento de Linhares revelava casos ocorridos em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Seu conteúdo foi aparentemente ignorado pelas autoridades nacionais, mas amplamente divulgado no exterior a partir de 1970.
Dentro do presídio, militantes de diversas tendências de esquerda se organizaram para enfrentar os embates com a repressão. Foi formado o coletivo – nome genérico dado ao grupo de presos políticos que administrava a vida na cadeia – que chegou a ser chamado de “República Comunista de Linhares”. A organização coordenava a distribuição igualitária dos bens materiais, promovia jogos para a distração dos presos e mantinha uma biblioteca com livros proibidos, introduzidos clandestinamente e escondidos em lugares como o varal de roupas.
A Penitenciária de Linhares foi originalmente planejada para abrigar presos comuns. No início, seria uma instituição penal agrícola voltada para a recuperação de infratores. Inaugurada em janeiro de 1966 com o nome de Penitenciária Regional José Edson Cavalieri, Linhares era dividida em cinco alas com celas individuais, o que dificultaria o contato entre os detentos.
Em 1965, o AI-2 determinou o julgamento de indivíduos acusados de subversão somente em foro militar. No final da década de 1960, com o aumento das ações de luta armada em Minas Gerais, a penitenciária foi ocupada pelo Exército e adaptada como presídio político. Em abril de 1967, 16 integrantes do Movimento Nacional Revolucionário envolvidos com a Guerrilha de Caparaó, uma tentativa frustrada de implantação de um foco guerrilheiro rural na fronteira de Minas com o Espírito Santo [ver RHBN nº 23, agosto de 2007], foram os primeiros presos políticos enviados para Linhares.
Poucos dias após a chegada do grupo, o corpo de um deles, Milton Soares de Castro, foi encontrado enforcado dentro de sua cela. Suspeita-se que ele tenha morrido na sede da IV Região Militar, onde eram realizados interrogatórios. A versão oficial de suicídio – com o corpo do preso amarrado a um cano que ficava a meio metro do chão – seria definitivamente desmascarada 35 anos depois por um jornal local, ao encontrar seus restos mortais numa vala comum.
Apesar desse violento começo, a Penitenciária de Linhares era vista pela maioria dos presos políticos como um lugar relativamente tranqüilo, em comparação com outras instituições repressoras. Não havia torturas físicas contínuas, por exemplo. Paulatinamente, os militantes de esquerda ocuparam o presídio. Vinham de organizações como a Colina, a Corrente Revolucionária de Minas Gerais ou a Ação Popular.
A maior incidência dessa população carcerária se deu entre 1969 e 1972, período em que a Penitenciária abrigou cerca de 220 detentos, entre homens e mulheres. Os presos eram divididos pelo grau de envolvimento com a luta armada. Uma ala no lado esquerdo da instituição foi destinada às mulheres. Linhares tornou-se exclusiva para presos políticos, e permaneceram apenas de 30 a 40 presos comuns na penitenciária.
No fim da tarde, quando estavam todos nas celas, os militantes entoavam em coro a “Internacional”, hino que marcou manifestações operárias no século XX. Músicas foram frequentemente cantadas para reforçar a união do grupo. Maridos e esposas, mães e filhos, que ocupavam as alas masculina e feminina, com o contato proibido, comunicavam-se por meio de canções.
Bilhetes eram displicentemente “esquecidos” em determinados lugares ou se faziam balas, recados em papéis finos e cuidadosamente dobrados que eram transportados na boca. Caso fossem descobertas, eram engolidas. Às vezes, os civis e presos comuns que formavam a guarda interna da penitenciária auxiliavam o intercâmbio. Esta suspeita foi motivo de debate na Auditoria Militar.
As normas disciplinares na Penitenciária de Linhares eram rígidas. O dia a dia era comandado por sirenes, que indicavam desde a hora de levantar até o toque de recolher. Ações de treinamento antiterrorista acordavam os presos abruptamente no meio da noite. Eles reagiam cantando a “Internacional” e conseguiram que, após certo tempo, fossem suspensos os treinamentos.
Depois da apreensão de Até sempre 3, foram instalados parlatórios – cercas entre os presos e suas visitas. Inconformados, os detentos reagiram com uma greve de fome, em março de 1971, e o parlatório foi suspenso. Em setembro daquele mesmo ano, nova greve de fome geral reivindicava melhor alimentação. A ala feminina foi subitamente desativada, gerando revolta entre os presos, que temiam pelo destino de suas ocupantes. O presídio foi invadido pela Polícia Militar e os líderes foram trancafiados por tempo indeterminado na galeria antes destinada às suas amigas e companheiras.
Mas este não foi o fim da resistência em Linhares. Apesar de estarem praticamente incomunicáveis, alguns presos recorreram à oficina de artesanato do presídio para vender produtos que financiavam alimentos, advogados e transporte de parentes. Gravado nas peças produzidas, o nome “Penitenciária de Linhares” ajudava a divulgar para o mundo a existência de presos políticos em Juiz de Fora.
Foi por meio dessas estratégias, ao mesmo tempo criativas e combativas, que os presos políticos puderam resistir e negociar com os seus algozes. Atualmente, a tarefa de revisitar e iluminar os sombrios anos da ditadura militar vem ganhando cada vez mais espaço na agenda do governo e na pauta da mídia. Diante desse impulso de passar os anos de ditadura a limpo, resgatar a história da Penitenciária de Linhares é fundamental para se compreender como se deu a luta contra o regime militar dentro dos presídios brasileiros.
Flávia Maria Franchini Ribeiro é jornalista e professora de História na rede municipal de Juiz de Fora e de Santos Dumont (MG).
Saiba Mais - Bibliografia
Brasil: nunca mais – Um relato para a História. Petrópolis: Vozes, 1985.
PAIVA, Maurício. Companheira Carmela: a história da luta de Carmela Pezzuti e seus dois filhos na resistência ao regime militar e no exílio. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 1996.
PAIVA, Maurício. O Sonho Exilado. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2004.
VIANA, Gilney Amorim. Glória, mãe de Preso Político. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Saiba Mais - Filme
“A loura da metralhadora”, de Patrícia Moran (1996).
Saiba Mais - Internet
Trechos do Documento de Linhares:
www.cidh.org/annualrep/73sp/sec.1.Brasilia.htm
Artigos e reportagens que abordam ex-presos políticos da Penitenciária de Linhares:
www.torturanuncamais-rj.org.br
Confidências mineiras
Flávia Maria Franchini Ribeiro