“Sobre a Amazônia é quase impossível dizer pouco” — palavras sábias de Gastão Cruls (1888-1959), médico sanitarista e escritor que conhecia a fundo a floresta e seus segredos. O fascínio de Gastão pela natureza brasileira foi, provavelmente, herdado do pai, o astrônomo belga Luís Cruls (1848-1908). Naturalizado brasileiro, Luís Cruls liderou, na última década do século XIX, a expedição da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil. O objetivo? Iniciar de fato a demarcação do futuro Distrito Federal. Foi a primeira iniciativa oficial do governo brasileiro para concretizar a mudança da capital do Rio de Janeiro para o interior. Essa comitiva ficou conhecida como Missão Cruls.
Seguindo os passos do pai, Gastão participou, de 1907 a 1915, de outra expedição célebre: a Comissão Rondon, encarregada de construir a linha telegráfica ligando Cuiabá, no Mato Grosso, a Santo Antônio do Madeira, em Rondônia. A jornada marcou Gastão Cruls profundamente, e o autor dedicaria vários anos de sua vida à catalogação e à divulgação de espécimes da Amazônia.
De sua autoria, a Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional tem um exemplar da primeira edição do livro Hiléia amazônica, aspectos da flora, fauna, arqueologia e etnografia indígenas. Ilustrado com 48 aquarelas, a obra tem descrições de diversas espécies da fauna e da flora amazônicas, abordando, também, algumas manifestações culturais dos povos da floresta. O termo “hiléia”, que denomina, simplesmente, a floresta equatorial, foi criado pelos naturalistas Alexander von Humboldt (1769-1859) e Aimé Bonpland (1773-1858). No livro, Cruls fez questão de destacar também que a Amazônia não é apenas brasileira, “se estendendo do sopé dos Andes ao Oceano, como ainda parte do alto Orinoco, as três Guianas, o baixo Tocantins e o litoral paraense com certo trecho do noroeste do estado do Maranhão estão revestidas de quase ininterrupta floresta — floresta pluvial equatorial — com características próprias”.
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Em relação à variedade de aves que encontrou, seu comentário acerca dos surucuás (pequenos pássaros de hábitos florestais) é um bom exemplo do detalhamento de suas descrições:
aves tristes sossegadas, de grito forte e sincopado, mas melancólico, empoleiram-se por muito tempo num mesmo galho, à espera de que qualquer inseto lhes passe ao alcance do bico ou, quando muito, de um pequeno vôo, pois que logo retornam ao seu pouso preferido. A mais, mostram-se de uma fragilidade extrema. Sobre um corpo exíguo e leve, aumentando-lhe o vulto, em camada espessa distribui-se o esplêndido frouxel de penas finas, mas pronto a despregar-se ao menor esforço. Isso faz o desespero dos colecionadores, que raro lhe conseguem um pele perfeita.
Um dos admiradores do livro era o sempre eloqüente Gilberto Freyre (1900-87), que disse não haver “fantasia nessas páginas que representam pachorrento estudo cientifico da região: da flora, da fauna, do homem. Ao que o Sr. Gastão Cruls não se limita é à fera enunciação das várias formas de vegetação, da vida animal, da cultura humana que convivem na Amazônia. O escritor surge mais uma vez com o seu senso poético da interpretação do grande drama regional que é a vida na mata amazônica”. A leitura de Hiléia amazônica é um convite ao estudo e à preservação desse imenso patrimônio de nosso país.
(Por Nelson Cantarino)
Conhecer para preservar
Nelson Cantarino