Consciência de cor

Petrônio Domingues

  • Em 20 de dezembro de 1903, uma nota no jornal O Comércio de Campinas saudava o mais novo veículo informativo da imprensa brasileira – O Baluarte, que se anunciava como “órgão oficial do Centro Literário dos Homens de Cor e dedicado à defesa da classe”. A nota saudava a iniciativa de “levantar essa classe há muito tempo aviltada em nosso país” e informava que O Baluarte pretendia preparar “os homens de cor” para “as lutas da vida, ensinando-os a ser cidadãos no mais restrito sentido da palavra”. O Baluarte não era mais um jornal que aparecia no Brasil, mas um jornal especial, dedicado à população negra, na época habitualmente chamada de “classe dos homens de cor”. 

    Antes de O Baluarte, tem-se notícia de apenas dois jornais desse tipo: A Pátria, fundado em São Paulo pelo líder abolicionista Ignácio Araújo Lima em 1889, e O Exemplo, de Porto Alegre, criado em 1892. Mas como surgiram esses jornais ? No período pós-abolição, os libertos, os ex-escravos e seus descendentes eram geralmente representados de forma negativa pelos jornais da grande imprensa. O espaço reservado nesses jornais para abordar os problemas, eventos, feitos e sonhos da comunidade negra era praticamente inexistente. Por outro lado, havia uma intensa publicação de jornais voltados para públicos específicos, como os do movimento operário e os das colônias de imigrantes estrangeiros. Foi nesse contexto de agitada imprensa alternativa que nasceram os jornais produzidos por negros e voltados para a luta em defesa de suas questões, chamados, em seu conjunto, de “imprensa negra”. Tratava-se de uma rede de comunicação, expressão cultural, articulação de idéias e reivindicação política de um segmento sem voz ou visibilidade na sociedade brasileira.

    Com o fim da escravidão e o advento da República, foram publicadas dezenas de jornais da imprensa negra no Brasil. Em São Paulo surgiram, entre outros, os periódicos A Pátria (1889), O Alfinete (1918), O Kosmos (1922), Tribuna Negra (1928) e Progresso (1928). No Rio Grande do Sul apareceram O Exemplo (1892), na cidade de Porto Alegre; A Cruzada (1905), em Pelotas, e A Revolta (1925), em Bagé, entre outros. Só nesses dois estados existiam pelo menos 43 jornais da imprensa negra entre 1889 e 1930. Mas há indícios da produção de mais jornais desse tipo nesses e em outros estados. 

  • Os subtítulos dos periódicos eram sugestivos, indicando de forma evidente a peculiaridade das publicações.  O jornal A Liberdade proclamava ser um “órgão crítico, literário e noticioso dedicado à classe de cor”. Já o Getulino se dizia um “órgão para a defesa dos interesses dos homens pretos” e, finalmente, O Clarim da Alvorada, que em 1928 adotou como subtítulo: “Legítimo órgão da mocidade negra de São Paulo. Pelo interesse dos homens pretos. Noticioso, literário e de combate”.

    Entre 1889 a 1930, é possível dividir a história da imprensa negra em duas fases. Na primeira, os jornais enfatizavam a divulgação da vida social – festas, aniversários, batizados, noivados, casamentos e falecimentos – dos homens e mulheres da comunidade negra. Na década de 1920 inaugurou-se uma segunda fase, marcada por reivindicações de caráter político. 

    Os jornais tinham circulação restrita e sua distribuição era feita principalmente nos eventos sociais das associações da comunidade negra, sendo também vendidos pelos editores em suas próprias casas. Ofereciam-se gratuitamente muitos exemplares, pois o ideal prevalecia sobre o lucro, que era praticamente inexistente. Quanto à periodicidade, alguns eram semanais, outros, quinzenais e a maioria, mensal. O número de páginas dos jornais também variava muito. Encontravam-se jornais de quatro a 18 páginas. A tiragem era modesta, com exceção de O Clarim da Alvorada, de São Paulo, fundado pelo intelectual negro Jayme de Aguiar e pelo ativista José Correia Leite em 1924, e que alcançou uma tiragem mensal que oscilava entre 1.000 e 2.000 exemplares. Já o Getulino foi criado pelos jornalistas negros Lino Guedes e Benedito Florêncio, na cidade de Campinas, em 1923. Seu nome era uma alusão ao apelido de Luís Gama, o grande dirigente abolicionista. Foi o primeiro jornal a conclamar pela “emancipação completa” dos negros no

  • Brasil e circulava com tiragem semanal de 1.500 exemplares. Eram tiragens significativas para a época.

    Muitos desses jornais tiveram vida curta, mas houve alguns casos que fugiram a essa regra, como O Exemplo, de Porto Alegre (1892-1930). Porém, o jornal da imprensa negra de maior longevidade foi A Alvorada, de Pelotas (RS), que, embora tenha tido algumas pequenas interrupções, circulou de 1907 a 1965. Com correspondentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Portugal, recebia cartas de todo o país. De modo geral, os jornais eram bem acolhidos pela comunidade negra. Um dos leitores declarou na época: “Sendo, de há muitos anos, a minha maior aspiração ver, apalpar e deliciar-me na leitura de um jornal dirigido, escrito e mantido por homens pretos, não poderão medir V.V.s.s. o meu entusiasmo ao ter em minhas mãos o Getulino, fadado como está a levar avante a nobre idéia de defender os interesses dos homens de cor”.

    Muitos dos jornais nasceram como publicações das associações dos “homens de cor”. Em São Paulo, o Centro Cultural Henrique Dias publicava o jornal O Quilombo; a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos editava o periódico A Protetora; a Sociedade Propugnadora 13 de Maio publicava O Propugnador. As associações negras – de cunho beneficente, recreativo ou cultural – constituíam uma das principais fontes de recursos para a publicação dos jornais. Eles também eram mantidos com o dinheiro proveniente dos assinantes, dos modestos anúncios publicitários e da promoção de festas, rifas e leilões beneficentes.

    As tipografias que imprimiam os periódicos eram artesanais, instaladas às vezes na casa dos editores, que, por sinal, eram jornalistas amadores e muitas vezes tiravam dinheiro do próprio bolso para assumir as despesas cotidianas das edições. Os negros que produziam os jornais eram provenientes das camadas inferiores e intermediárias da estrutura de classes: funcionários públicos subalternos, profissionais liberais, técnicos de nível médio, artesãos, operários etc.

  • Esses jornais publicavam com freqüência fofocas sobre a vida dos indivíduos da comunidade negra, noticiando comportamentos considerados desviantes ou desabonadores. Outra característica era o discurso puritano, de combate à vadiagem, ao jogo de azar, à vida boêmia e ao uso de bebida alcoólica. O negro deveria ser trabalhador, honesto e cumpridor de seus deveres, além de zelar pela moral e pelos bons costumes.

    A construção de “heróis” negros era uma preocupação permanente dos periódicos: os abolicionistas Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, o escritor Cruz e Souza e o “guerreiro” Henrique Dias eram alguns dos personagens afro-brasileiros mais exaltados. Também era freqüente o elogio à princesa Isabel, considerada a “redentora da raça negra”. Havia ainda a preocupação em garantir espaço para que os negros letrados publicassem seus contos e poesias.

    Outra característica da imprensa negra foi o predomínio absoluto dos homens. As mulheres não chegavam a 10% do total de colaboradores. Essa desigualdade de gênero refletia a visão que predominava na época: a mulher deveria ser mãe e esposa. Em edição de 2 de setembro de 1923, um editorial do jornal Getulino dizia: “A mulher foi criada para mãe, para doce companheira do homem e, nesse sentido, a sua constituição física e moral é para o completo desenvolvimento dessa missão”.

  • Os jornais da “gente de cor” tratavam de questões predominantemente ligadas à comunidade negra nacional, mas também noticiava acontecimentos referentes aos negros fora da África. O Clarim da Alvorada, por exemplo, mantinha a coluna “Mundo Negro”, na qual fatos importantes da comunidade negra internacional eram traduzidos e noticiados em suas páginas. Dava-se especial destaque ao líder negro jamaicano Marcus Garvey, ligado ao movimento pan-africanista, articulador da idéia de que existe uma unidade de interesses e objetivos das populações de origem africana na diáspora. Também havia algum nível de intercâmbio com os jornais e as organizações negras dos Estados Unidos. Em 1929, por exemplo, foi alardeada a visita do “respeitado” editor do jornal afro-americano The Chicago Defender, Robert S. Abbot, às redações da imprensa negra paulistana.

    Os jornais da imprensa negra geralmente adotavam a cultura européia – em especial a francesa – como modelo de civilização e modernidade. Em função disso, a cultura africana era considerada inferior. Os ritmos, as sonoridades e a dança dos africanos eram caracterizados como “grotescos”, “bárbaros” ou “selvagens”. A herança cultural e religiosa africana no Brasil também era depreciada, como era o caso da macumba, do samba e da capoeira. O setor da população negra que se aglutinava em torno desses jornais negava a África por dois motivos: primeiro, para se afirmar brasileiro e, segundo, para se sentir membro de uma nação pretensamente civilizada. As palavras do jornal O Bandeirante, de setembro de 1918, eram reveladoras: “Se os nossos antepassados tiveram por berço a terra africana, é preciso que se note, nós temos por berço e Pátria este grande País... Não somos africanos, somos brasileiros!”. O discurso nacionalista consistia em enaltecer as proezas do negro brasileiro, ocidentalizado, que teria assimilado os valores supremos da “civilização” e da “modernidade”. Além de “atrasados”, os africanos seriam estrangeiros.

    A imprensa negra foi pioneira na tarefa de propor alternativas concretas para a superação do racismo na sociedade brasileira. Havia certo consenso de que a educação era o instrumento mais eficaz para se realizar esse processo. Educar a população descendente de escravos era uma questão de princípio. As soluções apontadas também passavam pela necessidade de união e de reabilitação moral da população negra.

  • Outra estratégia foi defender “A Nova Abolição”; pelo menos era este o lema do jornal O Clarim da Alvorada em sua edição de 13 de maio de 1924. Em seu período inicial, era freqüente o jornal trazer uma ilustração nos números comemorativos da Abolição: um negro robusto gritando, com as mãos estendidas (ou levantadas) e as correntes partidas, simbolizando o fim da opressão. Aos poucos foi gerada uma nova palavra de ordem: a “segunda abolição” – ou seja, uma revolução dentro da ordem instituída capaz de assegurar a igualdade de oportunidades para negros e brancos na sociedade brasileira.  

    A leitura desses jornais denuncia os problemas que atingiam a população negra no pós-abolição, bem como revela seu cotidiano e suas opiniões sobre questões políticas, culturais e econômicas, como o desemprego, o custo de vida, a educação e a saúde públicas, a escravidão, os costumes sociais, a violência policial, as mobilizações populares, os movimentos políticos.

    Foram esses jornais que fizeram as primeiras denúncias públicas do “preconceito de cor” que grassava em várias cidades do país no início da República, impedindo o negro de ingressar ou freqüentar determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos comerciais, religiosos, algumas escolas, ruas e praças públicas. O mais interessante é que muitas dessas denúncias ocorreram numa época em que o consenso geral da opinião pública era de que negro não tinha problema e que, no Brasil, não havia preconceito ou discriminação raciais.

  • Na medida em que valorizavam o negro e sua incessante busca pela elevação cultural e social, os jornais da “classe dos homens de cor” contribuíam para que esse segmento populacional adquirisse consciência racial e passasse a lutar pelos seus direitos de cidadão.

    Petrônio Domingues é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor de Uma história não contada. Negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Ed. Senac, 2004.