A população da tranqüila cidade de Bastos, no interior de São Paulo, foi surpreendida por um crime sangrento em março de 1946. O professor de japonês Satoru Yamamoto invadiu a casa de Ikuta Mizobe, presidente da cooperativa agrícola da região. Aproveitando-se do momento em que Mizobe se dirigia ao banheiro, na parte de fora da casa, Yamamoto apontou sua arma para o peito do compatriota e disparou. A mulher e a filha ouviram o estampido e avistaram, desesperadas, o corpo de Mizobe estendido no terreno. Ali estava a primeira vítima fatal da Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos).
Acredita-se que a Shindo Renmei tenha sido fundada pelo ex-coronel Junji Kikawa em Marília, interior paulista, em 1942. Tratava-se de uma associação secreta cujo objetivo era manter as tradições e práticas culturais japonesas no Brasil, especialmente o culto ao imperador. Não era a única sociedade clandestina nipônica a atuar no país. No entanto, era a mais poderosa. A Shindo Renmei reuniu cerca de 100 mil sócios contribuintes, que estavam divididos em 64 municípios do interior de São Paulo. Uma das bases da associação era a Casa Paulista, uma empresa atacadista situada na capital, que foi organizada graças à doação de 30 mil cruzeiros feita por um fazendeiro japonês. A Casa Paulista era uma espécie de “fachada”, e por meio dela a Shindo Renmei arregimentava mais sócios. Orientados por Kikawa, agentes aliciadores, disfarçados de “vendedores”, deslocavam-se para as regiões interioranas de São Paulo com o objetivo de arrebanhar novos membros e simpatizantes. Os sócios pagavam mensalidades que variavam de dois a dez cruzeiros. Segundo as autoridades policiais, a associação movimentava mensalmente 700 mil cruzeiros – o que hoje corresponde a cerca de 800 mil reais.
O término da Segunda Guerra Mundial e a rendição do imperador Hiroíto aos representantes das potências aliadas em agosto de 1945 provocaram uma divisão na comunidade japonesa e nikkei (descendentes de japoneses) que vivia no Brasil. Na verdade, ela se dividiu em dois grupos: os kachigumi (“patriotas” ou “vitoristas”) e os makegumi (“derrotistas” ou “esclarecidos”). Os vitoristas – caracterizados por um nacionalismo radical – representavam a maior parte da comunidade, algo em torno de 80%. Definiam-se dessa maneira porque acreditavam que o Japão havia vencido a guerra. Em geral, eram lavradores, tintureiros e ex-militares, que dominavam mal a língua portuguesa e apresentavam um baixo nível cultural e econômico. Embora tentassem refazer a vida nos trópicos, fortes laços emocionais mantinham-nos ligados à terra natal. Boa parte deles pertencia à Shindo Renmei.
Os derrotistas, no outro pólo, constituíam um grupo bem menor. Foram assim denominados pelos vitoristas por reconhecerem a derrota da nação nipônica diante das forças aliadas. Eram indivíduos que tinham uma situação econômica e um repertório cultural importante. Eram comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, em suma, elementos que já estavam integrados à sociedade brasileira.
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Surpreendentemente, os vitoristas, com panfletos e fotos adulteradas, começaram a defender a vitória do Japão. Nos manuscritos havia informações segundo as quais o imperador tinha abdicado em favor de seu filho; o governo nipônico já possuía a bomba atômica; Nova York e outras cidades norte-americanas tinham sido tomadas pelo exército japonês. Reproduções fotográficas forjadas mostravam oficiais americanos se rendendo às tropas japonesas. Os vitoristas afirmavam ainda que a derrota do Japão nada mais era do que uma propaganda falsa incentivada pelos Estados Unidos. Eles não pararam aí. Os vitoristas da Shindo Renmei passaram a extorquir seus compatriotas. Apresentando-se como agente secreto, um nipônico vendia falsas condecorações de guerra por cerca de mil dólares. Vendiam também cédulas desvalorizadas de cem ienes, passagens falsas para o Japão e terras que teriam sido incorporadas pelo Império japonês no decorrer da guerra.
A comunidade japonesa e nikkei estava absolutamente apreensiva. Visando modificar essa realidade, alguns nipônicos – logo chamados de “esclarecidos” – resolveram tomar uma atitude: produziram um texto em língua japonesa com o intuito de revelar aos seus patrícios a verdadeira situação do Japão do pós-guerra. Datado de 5 de outubro de 1945, o documento trazia também a Proclamação Imperial – o manifesto com a rendição oficial assinado por Hiroíto (1901–1989). Os japoneses que assinaram o texto temiam algum tipo de retaliação. Não por acaso, seu teor era estrategicamente sutil. Os esclarecidos não podiam imaginar o que o futuro lhes reservava. Sua atitude geraria muito ódio, e logo eles começaram a ser chamados de traidores. Os poucos nipônicos que concordavam com suas idéias passaram a ser igualmente estigmatizados.
À medida que o tempo passava, a boataria sobre a vitória do Japão tornava-se mais intensa. No entanto, os investigadores da Polícia Política não supunham que o principal responsável pelo combate à “propaganda americana” estava na Casa de Detenção de São Paulo. Tratava-se de Junji Kikawa. No período da guerra, inúmeros japoneses foram presos por medida de segurança nacional. A primeira detenção de Kikawa ocorreu em abril 1942, por “ameaça de represálias contra o Brasil”. Em fevereiro de 1944, o chefe da Shindo Renmei voltou às grades, desta vez sendo acusado de sabotagem. O ex-coronel esteve à frente de japoneses nacionalistas que atacaram plantações de hortelã (menta) e galpões de criação de bicho-da-seda dos seus conterrâneos. Esses nipônicos se opunham à venda de hortelã e seda aos países aliados, uma vez que esses produtos eram empregados no esforço de guerra.
Na Casa de Detenção, Kikawa redigia incansavelmente vários panfletos ressaltando a campanha vitoriosa do Japão na guerra. Lembrava ainda a importância de os patrícios cultuarem o imperador e cultivarem o yamatodamashii, isto é, o espírito japonês – uma espécie de comportamento ideal, superior. Esses panfletos eram entregues a alguns sócios da Shindo Renmei de sua confiança, homens como o engenheiro Ryotaro Negoro e o agricultor Seiichi Tomari (tido como ideólogo da associação). Obedecendo às ordens de Kikawa, esses dois japoneses assumiram a tarefa de disseminar as idéias da Shindo nos municípios de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul – áreas de grande concentração de nipônicos e nikkeis. Após organizar uma sucursal da associação em Bastos, Tomari foi avisado por seus conterrâneos de que um certo Ikuta Mizobe vinha fazendo uma campanha de esclarecimento entre os japoneses da região. Ele sugeria que o Sol Nascente havia perdido a guerra.
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Mizobe foi uma das 23 pessoas executadas pelos Tokkotai – o braço armado da Shindo Renmei (147 foram feridas). Após a divulgação do manifesto de outubro de 1945, o agricultor Sunao Shinyashiki passou a recrutar no interior paulista nipônicos dispostos a assassinar os “maus japoneses”. Eles formariam os Batalhões do Vento Divino, ou Tokkotai, forma abreviada de Taiatari Tokuetsu Kogeitai – Unidades Especiais de Ataque por Choque Corporal.
O surgimento da Shindo Renmei está relacionado à situação delicada vivenciada pelos japoneses e nikkeis no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. Com a implementação da ditadura de Getulio Vargas (Estado Novo) em 1937, os nipônicos e nikkeis tornaram-se vítimas da “campanha de nacionalização” levada a cabo pelo governo. O ponto de partida desse projeto de construção da nacionalidade foi a reforma da educação, e a primeira medida significativa foi a obrigatoriedade do ensino em língua portuguesa. Muitas escolas não puderam continuar com suas atividades porque não tinham condições de cumprir as novas diretrizes. Todas as escolas deviam adotar nomes brasileiros; os cargos de direção só podiam ser entregues a brasileiros natos; os educadores também deviam ser brasileiros natos ou naturalizados, formados em instituições nacionais. Além disso, as aulas tinham que ser ministradas em português e o ensino de idiomas estrangeiros a menores de 14 anos estava proibido. Aliadas a uma série de outros dispositivos legais, as medidas inviabilizaram as escolas estrangeiras.
A campanha se intensificou em 1939, com a desautorização do uso de línguas estrangeiras em público – mesmo em cerimônias religiosas. No mesmo ano, a política de nacionalização atingiu os meios de comunicação. Programas de rádio foram censurados e os jornais em idiomas estrangeiros sofreram restrições importantes. Num primeiro momento, os jornais foram obrigados a concordar com a intervenção de um redator brasileiro cujo papel era exercer a censura. Além disso, tiveram que publicar edições bilíngües e textos patrióticos de autores nacionais. Posteriormente, houve uma proibição categórica, que pôs fim à maioria dos jornais.
A repressão da ditadura às escolas estrangeiras foi violenta, sobretudo para alemães e japoneses. Em fins da década de 1930, aproximadamente 30 mil nikkeis estudavam em 486 escolas japonesas. Em 1939, 219 delas tinham sido fechadas. Os nipônicos ficaram particularmente descontentes com esse movimento do regime estadonovista, uma vez que a escola funcionava como um agente de socialização. Ali se debatiam questões políticas referentes à comunidade e realizavam-se vários tipos de festas que reforçavam os elos culturais comuns. Dentre elas estavam a comemoração do Ano Novo, o Dia do Império, o aniversário do imperador. Além disso, as principais atividades realizadas na instituição eram precedidas de certos ritos, como o culto ao Palácio Imperial – em que os japoneses faziam um gesto de reverência em direção ao Oriente –, a adoração ao retrato do imperador; o cântico do hino nacional e outros. Em geral, essas celebrações contavam com a presença de todos os integrantes da comunidade.
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A escola nipônica não era, portanto, simplesmente um espaço para o treinamento e o aprendizado da língua. Era um espaço santificado no qual destacava-se o culto à figura imperial. O imperador era considerado o ujigami, quer dizer, o deus padroeiro que protegia a instituição e seus membros. Nessas circunstâncias, a repressão do Estado Novo às escolas estrangeiras representou para os japoneses um ultraje, um desrespeito à sua cultura milenar e à imagem do monarca Hiroíto. Para eles, era inaceitável o fato de terem que interromper suas práticas culturais, uma vez que sua “visão de mundo” – que procuravam repassar aos nikkeis – estava profundamente ligada a elas. A língua japonesa, a história mítica do Japão e a divinização do imperador eram algumas peças que compunham um quadro simbólico que balizava a vida dos súditos do Sol Nascente nos trópicos e em outras áreas – sem tal sistema de referência, tudo ao seu redor perdia sentido. Neste contexto, coube à Shindo Renmei preservar as características culturais nipônicas no Brasil, resistindo, assim, ao esforço nacionalizante feito pela ditadura de Vargas.
Para que a postura dos vitoristas ganhe algum sentido, deve-se analisar a relevância do xintoísmo para esses homens. Para a maioria dos japoneses que viviam em terras brasileiras na década de 1940, o Japão era uma nação divina e o imperador personificava essa divinização. De acordo com mitos vigorosamente inscritos na cultura nipônica, o Japão havia sido criado por dois irmãos, o deus Izanagi e a deusa Izanami. Da Ponte Flutuante do Céu, Izanagi e Izanami jogaram uma lança feita de pedras preciosas em direção a um abismo. Dessa maneira descobriram o oceano. Ao revolverem suas águas com a lança, gotículas respingaram do objeto e produziram a ilha de Onogoro-Jima (“Ilha que se Solidificou Espontaneamente”). Ato contínuo, as divindades desceram até ela. Chegando lá, foram arrebatados pelo desejo de se unirem pelo casamento. Cravaram um pilar no chão e deram uma volta em torno dele. Izanagi por um lado e Izanami por outro. Após cumprirem o percurso, Izanagi elogiou a beleza da deusa fêmea e se casaram.
Izanami deu à luz mares, rios, montanhas, vegetações, concluindo a criação do Japão. Contudo, as divindades não estavam satisfeitas. Queriam produzir um ente que dominasse o universo. Essa vontade alimentou o nascimento de Amaterasu Omikami, a deusa do sol – que se destacava por sua beleza estonteante. Omikami teve muitos descendentes. Seu tataraneto, conhecido como Jimmu Tenno, tornou-se o primeiro imperador do Japão.
Os japoneses, em maior ou menor grau, estavam familiarizados com essas lendas. A partir delas surgiu uma crença segundo a qual a nação nipônica era divina e os imperadores, representantes dos deuses na terra. Como este credo foi formado é uma outra discussão. O que importa aqui é o registro de que a crença divinatória distorcia a visão que os japoneses tinham da realidade. Aos seus olhos, o Japão havia surgido das gotas de água projetadas pela lança de Izanagi e Izanami. Seu primeiro monarca era descendente de Amaterasu Omikami, a deusa do sol, cujos poderes governavam todas as coisas. Influenciados por esses relatos fantásticos, os nipônicos eram conduzidos à seguinte conclusão: o Japão era um país protegido pelas divindades e, portanto, superior aos demais.
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Esta maneira de pensar fazia com que a afirmação de que o Sol Nascente havia perdido a guerra carecesse de lógica. Para os japoneses, era mais coerente – e menos doloroso – considerar a afirmativa uma mentira; ou melhor, uma inverdade construída pela propaganda norte-americana. O mito da “invencibilidade milenar” do Japão – o país nunca perdera um conflito até 1945 – contribuiu muito para que os nipônicos continuassem com uma visão de mundo equivocada ou, mais acertadamente, ilusória. Esta é a chave explicativa dos atentados praticados pelos integrantes dos Tokkotai. Eles só enxergavam os derrotistas pelas lentes da intolerância.
O desfecho da história da seita contada aqui é o que se segue: 31.380 imigrantes japoneses foram considerados suspeitos de integrarem a Shindo Renmei. Destes, 1.423 foram acusados pelo Ministério Público, e a Justiça reconheceu a culpa de 381 deles. Os mandantes ou executores dos crimes da Shindo Renmei, num total de 80, chegaram a ser listados pelo governo de Eurico Gaspar Dutra para serem expulsos do país. Contudo, isso nunca ocorreu, em função da lentidão da Justiça e da atuação dos advogados de defesa.
Carlos Leonardo Bahiense da Silva é professor da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e Mestre pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) com a dissertação “Em nome do imperador: reflexões sobre a Shindo Renmei e sua campanha pela preservação da etnicidade japonesa no Brasil (1937-1950)”.
Conspiração Sol Nascente
Carlos Leonardo Bahiense da Silva