Consultório ao ar livre

Carlos Henrique Assunção Paiva

  • Momento da expedição Roncador-Xingu. O sanitarista ao lado de Orlando Villas-Boas (à direita).

    Judeu nascido na distante Ucrânia, o médico Noel Nutels (1913-1973) se definia, acima de tudo, como brasileiro. Não era à toa. Criado no Nordeste, ele dedicou grande parte de sua vida ao combate das doenças que assolavam o Brasil. Ele não poupou esforços ao sair do conforto do atendimento em consultório para o trabalho de campo. Foi assim que teve o primeiro contato com os índios, aderindo de forma pioneira à defesa destas populações, consagrando-se como um dos maiores indigenistas do país.

    Quando a família de Nutels desembarcou na cidade do Recife, não podia imaginar que a chegada na nova terra selaria o destino daquele menino de tal maneira. Com oito anos, o garoto vinha acompanhado da mãe e da tia, fugindo de mais uma onda de perseguição contra o povo judeu na Europa. O pai chegara à América do Sul anos antes, em 1912, quando o filho ainda não havia nascido. Mesmo assim, a família pouco sabia sobre a nova terra, à qual se referiam como “Zudamérica”. A única certeza era de que se tratava de um paraíso: distante da fome e da pobreza que tanto conheciam.

    O que os Nutels encontraram não os decepcionou. Logo conseguiram abrir uma modesta pensão, onde o menino foi criado. Ele cresceu em contato com os frequentadores do estabelecimento, e ali fez algumas das amizades que seriam providenciais para seu futuro profissional. Aproximou-se, por exemplo, do escritor Rubem Braga (1913-1990) – que fora enviado para a cidade pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand –, e dos irmãos mais velhos de Ariano Suassuna: Saulo, João e Lucas. Nutels e Saulo se graduaram juntos em Medicina, em 1936.

    Em busca de um sonhado emprego como funcionário público, o jovem partiu para o Rio de Janeiro. Mas teve uma grande decepção, já que para assumir o cargo tinha que ser naturalizado brasileiro. Diante das exigências burocráticas, acabou perdendo a vaga. Ficou indignado: “Sou é mulato sarará, e dos bons. Cabeça chata, cabra safado. E aqui estou, brasileirinho da silva, nordestino de papo amarelo – documento da força da absorção desta terra selvagem. Com meu canudo de doutor, minhas marcazinhas de sífilis, aspirante a um emprego público, falando (mal) do governo”, declarou em uma entrevista concedida ao Pasquim, em 1970.

    Sem emprego e em busca de um novo projeto, ingressou na publicação semanal Diretrizes, fundada por um grupo de jovens intelectuais, como o jornalista Samuel Wainer (1910-1980), Rubem Braga e o pintor Di Cavalcanti (1897-1976). Os amigos eram uma espécie de extensão dos laços sociais que Nutels havia estabelecido ainda no Nordeste. O periódico contava também com colaboradores ilustres, como Graciliano Ramos (1892-1953) e Rachel de Queiroz (1920-2003). Servindo como fórum de discussões sobre os problemas do Brasil, a revista circulou pela primeira vez em abril de 1938. Temas como o avanço do fascismo na Europa e as incertezas em relação ao Estado Novo de Getulio Vargas eram frequentes nas páginas do semanário.

    Os integrantes de Diretrizes tinham uma visão bastante politizada da sociedade brasileira. Encaravam a população como motor das transformações sociais tão desejadas, uma perspectiva que guiava a prática de inúmeros militantes de esquerda naqueles tempos. Eles eram, em sua maioria, comunistas de carteirinha, filiados ao partido, como Jorge Amado, ou apenas “simpatizantes”, como Wainer e o próprio Nutels.

    Mas o ucraniano não trocou a medicina pela vida intelectual. Esta era apenas uma de suas facetas. Em 1940, atuou no combate à malária em uma das regiões mais infestadas pela doença no estado do Rio, o Km 47 da estrada Rio – São Paulo, um terreno onde seriam construídas as futuras instalações da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro A área, sujeita a alagamentos, favorecia o acúmulo de água, ingrediente fundamental para a reprodução do mosquito transmissor da malária.

    Esta experiência na Baixada Fluminense foi definitiva para o seu trabalho. Por conta de sua reputação, foi convidado pelo governo federal para participar da Expedição Roncador-Xingu, organizada em 1943. Partindo de Uberlândia, onde foi construída uma base para alojamento dos expedicionários, ela contemplou os estados de Goiás, Tocantins e Pará, chegando até as regiões fronteiriças com os estados de Amazonas, Maranhão e Mato Grosso.

     O objetivo do projeto era mapear as riquezas naturais e promover a colonização do interior do país. O médico começaria sua longa carreira de desbravador dos sertões brasileiros, permanecendo na expedição por cerca de quatro anos.

    É nesse momento que Nutels inicia a relação com as populações indígenas. Se não fossem as atuações dos médicos e dos irmãos Villas-Boas, o empreendimento teria ficado restrito à execução dos serviços militares e estratégicos impostos pelo governo. Eles acreditavam em uma gradual integração ou assimilação dos índios à civilização brasileira. Defendiam a criação de territórios para a proteção destas populações e tornaram-se personagens fundamentais no processo de criação do Parque Nacional do Xingu, em 1952.

    O que Nutels viu naquelas regiões confirmava as observações de expedições ao sertão do Brasil nas primeiras décadas do século XX. O habitante do interior do país vivia abandonado pelas autoridades públicas, em condições sanitárias completamente inadequadas. A consequência era um quadro devastador: uma população atingida por inúmeros males, como a malária e a tuberculose.

    A carreira do médico como tisiologista (especialista em doenças pulmonares) começou assim, na prática, com os trabalhos da expedição. A experiência foi tão emblemática que em 1951 ele frequentou um curso de especialização, organizado pelo Serviço Nacional de Tuberculose (SNT).  Durante os estudos, Nutels teve a inovadora ideia de constituir um serviço aéreo de atendimento médico às populações do interior do país. No final do curso, no Rio de Janeiro, ele foi nomeado médico do SNT, que precisava urgentemente de reforço nos seus quadros.
    O plano de desenvolver um sistema de atendimento médico aéreo saiu do papel com o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). O então ministro da Saúde, Maurício de Medeiros, confirmou publicamente que o projeto havia surgido de uma conversa com Nutels.

    Na segunda metade de 1956, nascia o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), tendo Noel Nutels à frente. A criação do órgão pode ser vista como um exemplo da habilidade do indigenista em tecer amizades e consolidar projetos políticos.

    O serviço, que dispunha de apenas uma aeronave, começou bem-sucedido. A equipe, formada por clínico geral, dentista, oftalmologista, operador de raios-X, laboratorista e auxiliares, prestou 33.474 atendimentos em apenas seis meses. Em exatos 104 dias de ação em 17 localidades das regiões Norte e Nordeste, o Susa elaborou diversos cadastros torácicos, vacinações por BCG, antivaríola, antiamarílica (contra a febre amarela). A atuação era diversificada, mas o Susa dedicava especial atenção ao combate à tuberculose. Segundo afirmação do médico ao jornal Correio da Manhã em 1956: “A gente apanha o avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e começa um roteiro. [...] Chegamos numa vila, montamos uma tendinha e começamos o serviço. Frequentemente, temos que quebrar a desconfiança do matuto ou do índio.”

    Para conquistar a adesão das populações rurais, o médico chegou a financiar a edição de um livreto de cordel intitulado A fera invisível ou o triste fim de uma trapezista que sofria do pulmão, escrito pelo pernambucano João José da Silva, que recebeu instruções do próprio Nutels sobre a natureza do mal. A estratégia era completada com a agenda de shows de música que a equipe promovia a fim de atrair a atenção da comunidade alvo da saúde pública.

    O objetivo era relativamente simples: transmitir informações sobre prevenção e tratamento da tuberculose. Em linguagem acessível, homens, mulheres e crianças do campo tinham assim a possibilidade de compreender como se dava o contágio e o tratamento do “mal-dos-peitos”, nome popular dado à enfermidade.

    A ampla experiência com as comunidades indígenas fez com que Nutels, em 1963, fosse indicado para a direção do Serviço de Proteção ao Índio, o SPI. Na curta passagem pela direção do órgão, deparou-se com alguns dos problemas históricos do país, como a invasão de terras demarcadas para estas populações, a grilagem e a corrupção dentro de órgãos públicos. Não foi um período tranquilo. Seis meses depois de sua posse houve o golpe civil-militar de 1964, que perseguiu os que eram considerados comunistas. Nutels era um deles. Foi imediatamente exonerado do cargo.

    Vítima de um câncer na bexiga, o médico dos sertões brasileiros morreu em fevereiro de 1973, no Rio de Janeiro. Um homem que pode ser visto como um dos mais eficientes porta-vozes da inclusão social de meados do século XX.

    Carlos Henrique Assunção Paiva é pesquisador do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e autor da tese “A utopia burocrática: um estudo histórico comparativo das políticas de saúde. Rio de Janeiro e São Paulo (1930-1960)” (UERJ, 2004).

    Saiba Mais - Bibliografia

    HOUAISS, Antônio (org.). Noel Nutels: memórias e depoimentos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
    LESSA, Orígenes. Índio cor de rosa: evocação de Noel Nutels. Rio de Janeiro: Codecri. Coleção Edições do Pasquim, vol. 22, 1978.
    MENEZES, Maria Lúcia Pires. Parque Nacional do Xingu: a construção de um território estatal. São Paulo: Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2000.
    Recomenda-se também o romance de Moacyr Scliar, “A majestade do Xingu”. SP: Cia das Letras, 1997.
    Autor: além dos documentários disponíveis no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz, tem algum outro documentário ou filme sobre Noel Nutels? Há alguma coisa disponível na internet? Não tenho conhecimento