A Europa do século XVIII ansiava por conhecer o Novo Mundo. Inúmeros viajantes arriscavam-se nessa aventura navegando pelo Atlântico, com a curiosidade voltada para o sul, aguçada pelos territórios mais desconhecidos, estranhos, encantados e selvagens do planeta. Eram marinheiros, piratas, aventureiros, contrabandistas e cientistas que desenhavam vistas e mapas, descreviam paisagens e pessoas, recolhiam amostras de vegetais, minerais e “curiosidades antropológicas” – um material que permitiu ao Velho Continente acumular um grande conhecimento científico sobre o Brasil, resultado das observações desses aventureiros. Tudo isso muito antes da chamada “descoberta científica do Brasil”, no século XIX, resultado das conhecidas viagens de naturalistas franceses, ingleses e alemães, como Auguste de Saint-Hilaire, William Burchell e Wied-Neuwied, Spix e Martius.
Esta contradição entre curiosidade e desconhecimento, na Europa dos setecentos, sobre a colônia de Sua Majestade Fidelíssima justifica-se porque as coroas ibéricas controlavam a divulgação de informações atualizadas sobre as suas possessões sul-americanas. De fato, tanto Portugal como a Espanha realizaram, ao longo deste século, inúmeras viagens científicas com objetivos geográficos, astronômicos, cartográficos e naturalistas aos territórios coloniais. Equipes de cientistas formados nas universidades e em academias militares e artísticas, requisitados tanto nos reinos peninsulares como em outros países europeus, como a França, a Itália, a Alemanha, realizaram observações científicas de ponta, registraram e descreveram o território colonial utilizando a tecnologia e os métodos mais avançados para a época, definiram propostas destinadas a desenvolver e racionalizar a exploração econômica em função das teorias mais modernas. Contudo, o “grande público” soube muito pouco dos resultados obtidos à custa desse alto investimento físico, intelectual e econômico, promovido pelos estados ilustrados e executado por intelectuais e cientistas notáveis com a colaboração dos governos coloniais, das entidades administrativas regionais e locais e das populações.
Embora deste período ser chamado o século de Luzes, esta informação produzida por agentes científicos ao serviço das monarquias ibéricas não era difundida. Assim, as fontes de informação predominantes continuavam a ser os autores dos séculos XVI e XVII, como André Thevét, Jean de Léry, Fernão Cardim, Piso e Marcgrave. O conhecimento produzido por marinheiros e traficantes, corsários e piratas, viajantes e particulares - fossem com interesses científicos ou comerciais - que transitavam pelo litoral brasileiro adquire, então enorme relevância, especialmente para as outras coroas. Se a presença de estrangeiros em território colonial era controlada pelas monarquias da Península Ibérica, os relatos daqueles que conseguiam aqui aportar eram a única forma de se conhecer melhor a colônia: se não a terra, o interior do sub-continente sul-americano e as jazidas de ouro e diamantes que se sabia existir mas não localizar de forma segura: o litoral, os portos, a linha da costa.
É inegável a importância estratégica e logística que os portos brasileiros representaram para a navegação atlântica. Navios e frotas com as mais variadas composições, enviados por monarcas, companhias comerciais ou armadores particulares, e com as mais diferentes finalidades - científicas, comerciais, de reconhecimento e espionagem -, alcançaram o litoral brasileiro. Escolhiam os portos de acordo com seu objetivo principal: os de localidades menores, mais fracamente controlados pelas tropas da colônia quando suas prioridades eram o comércio e o contrabando; ou os das cidades maiores - como o Rio de Janeiro e Salvador - se pretendiam abastecer-se rápida e eficazmente de alimentos, água e lenha para as cozinhas, reparar as embarcações fustigadas por violentas tempestades no meio do oceano ou, ainda, quando tinham epidemias a bordo.
-
A grande novidade do século XVIII é que, em comparação com os períodos anteriores, muitos destes viajantes associavam objetivos científicos às atividades de corso, pirataria e espionagem. É o caso de George Anson, comandante do navio Centurion, oficialmente enviado pelo soberano britânico em viagem de circunavegação entre os anos de 1740 e 1744. Anson aportou na ilha de Santa Catarina devido a uma grave situação sanitária a bordo: a morte de alguns membros da tripulação causada por febres associadas a navegações prolongadas em climas equatoriais. Além de desembarcar os doentes, limpar e desinfetar os navios com vinagre, fazer reparos e abastecer a embarcação de água e víveres, o comandante inglês aproveitou a estadia para descrever a ilha, o clima, enquadramento geográfico e ocupação humana com detalhes, fornecendo indicações precisas sobre canais de navegação, fortificações, núcleos de povoamento, fazendas, vegetação natural e produção agrícola, gado, animais selvagens e insetos, ou seja, informação com interesse estratégico.
Outros viajantes tinham intuitos puramente científicos, como os célebres James Cook, Joseph Banks e Charles Solander que, a bordo do navio Endeavour em viagem de circunavegação, chegaram ao porto do Rio de Janeiro em 13 de Novembro de 1768. “Nunca Tântalo se sentiu tão tantalizado” terá sido o comentário destes naturalistas impedidos pelo vice-rei conde de Azambuja de desembarcarem e observarem in loco a exuberante natureza da Baia da Guanabara. A comparação com o personagem mitológico condenado a morrer de sede com a boca sobre a água de um lago de águas cristalinas, que se retraía para fora de seu alcance cada vez que ele tentava beber, parecia inevitável. Mas o vice-rei tinha fortes suspeitas de que não passavam de piratas e contrabandistas e achava que faltaria “à sua obrigação e à sua honra” se autorizasse a entrada dos ingleses em território brasileiro. Apesar dos veementes protestos, a natureza rica, exótica e mal conhecida dos arredores cariocas só ficou ao alcance destes notáveis súditos da Majestade Britânica com as incursões sub-reptícias de Banks a terra e com a camuflagem de espécies naturais para estudo entre os vegetais e animais destinados a abastecer a cozinha dos frustrados cientistas.
Interesses relacionados com a busca de novos mercados e produtos são os que se associam à viagem de Thomas Lindley: um navio sob sua direção partiu do Cabo da Boa Esperança a 25 de Fevereiro de 1802, chegou a Santa Helena nos inícios de Março e três semanas depois partiu na direção de Salvador. Navios estrangeiros só eram permitidos no porto por um período limitado, caso apresentassem problemas técnicos ou para aguada e aprovisionamento. Qualquer tentativa de comércio era inibida: por meio da inspeção de oficiais da alfândega e da justiça, pela vigilância de soldados e, finalmente, pela supervisão de um barco-patrulha. Reconhecendo estas condicionantes, Lindley rumou para o Rio de Janeiro. Contudo, ventos contrários e uma costa perigosa – na altura de Abrolhos – “empurraram-no” de volta para Porto Seguro, uma cidade de menores dimensões, governada por um capitão-mor permissivo, que o autorizou a carregar o navio com açúcar e pau-brasil, um produto que era considerado de comércio ilícito. O navio acabaria por ser capturado no rio Caravelas e Lindley seguiria sob escolta para Salvador, acusado de contrabando.
As viagens de Anson, Banks e Lindley geraram relatos e diários de viagem que, com a “inteligência e luzes de geógrafos e mareantes esclarecidos e imparciais”, contribuíam exemplarmente para “uma descrição mais correta do globo, uma diminuição dos perigos da navegação, um melhor conhecimento dos costumes, artes e produções naturais de regiões desconhecidas”. Estes relatos são três exemplos de como diferentes tipos de missão – corso e pirataria, científica, comercial – contribuíram para um melhor conhecimento do Brasil no século XVIII.
-
Grande parte dos relatos de viagem e diários de navegação produzidos nessa época são acompanhados por desenhos de paisagens, pessoas, monumentos, animais, plantas e aves, ou ainda por mapas. Há uma complementaridade que se estabelece entre texto e imagem: enquanto os textos descrevem as viagens, as manobras náuticas, as instruções de navegação, os objetivos de quem viajava, as cidades onde aportavam, os seus habitantes, as maravilhas naturais e as potencialidades económicas, os desenhos tornavam as entradas dos portos, as vistas das cidades e outros aspectos reconhecíveis. Finalmente, havia também os mapas, que representavam o oceano Atlântico com suas ilhas, o litoral sul-americano e planos de portos e barras brasileiros.
Contudo, se os relatos descreviam com precisão e pormenor o litoral − combinando texto, imagens e mapas −, no que diz respeito ao interior, a informação era praticamente nula ou irrelevante. Os motivos que justificam a ausência de notícias sobre o Brasil na Europa setecentista relacionam-se a questões de natureza econômica, política e estratégica. Qualquer informação dessa natureza podia motivar ofensivas por parte de estados soberanos rivais e concorrentes da coroa portuguesa, pondo em perigo a sua soberania sobre a colônia.
A política de silêncio e censura adotada pelo Estado português em relação à colônia sul-americana era compreendida e apoiada pelos súditos que moravam no Brasil: ao serem inquiridos pelos viajantes sobre o interior, se mostravam, na maior parte dos casos, evasivos e pouco claros ou confiáveis. É que muitos dos habitantes da colônia lembravam-se dos ataques de corsários e suas as atividades de saque e pirataria − como os dos franceses Du Clerc e Duguay-Trouin à cidade do Rio de Janeiro em 1710 e 1711, respectivamente. Se reconheciam que, por um lado, era inevitável que navios estrangeiros tocassem o litoral brasileiro para abastecimento de água e víveres, reparo ou contrabando, e se era igualmente incontestável que a administração colonial e a população beneficiavam política e economicamente com isso, por outro, percebiam também que havia uma debilidade militar e defensiva e uma fraqueza populacional notórias ao longo do litoral brasileiro. Assim, a preocupação causada por essa debilidade justificava o silêncio dos colonos.
Mas quem lia esses relatos, admirava essas gravuras e observava estes mapas? Os textos produzidos por marinheiros, cartógrafos e artistas, acadêmicos e cientistas, comerciantes e traficantes, piratas e corsários, com as mais variadas nacionalidades − holandeses, franceses, ingleses, portugueses, russos, suecos − eram considerados, antes de mais nada, uma fonte de conhecimento com forte componente prático, e destinavam-se prioritariamente a outros homens do mar, que procuravam singrar as águas de forma segura e alcançar terra com a menor probabilidade de erro.
-
No entanto, os relatos de viagem tinham também interesse intelectual e estratégico junto da elite culta que permanecia nos reinos, em salões e academias científicas ou em gabinetes de políticos. A informação veiculada tinha interesse econômico, estratégico, comercial e científico e tanto velhos impérios como novas potências dependiam das observações de viajantes inteligentes, revertidas tanto em vantagem e benefício político, comercial e científico, como em orgulho e glória do país ligado à viagem.
Além disso, as descrições de viagens tinham também uma função didática e de entretenimento, sendo considerados verdadeiros livros de aventuras, um pouco à semelhança das viagens de Gulliver ou das aventuras de Robinson Crusoé.
A leitura de descrições de viagens mirabolantes e aventurosas, que implicavam a travessia do mar-oceano e o contato com uma nova natureza e humanidade, aumentaram gradualmente durante o século XVIII. Os relatos oficiais coexistiam com as descrições oficiosas, feitas à margem das exigências de disciplina e do rigor navais. Cientistas, mercadores e outros membros da sociedade civil a bordo tornaram-se autores dignos de crédito e também atrativos aos olhos de um público mais interessado em viagens e aventuras e menos em náutica ou ciências naturais. Face à crescente procura popular, os membros da tripulação e passageiros encontravam na edição dos relatos, escritos numa linguagem facilmente compreendida pelos seus compatriotas, uma fonte de rendimento não desprezível. Muitos destes relatos foram publicados em livros de pequeno formato, sem imagens e com um número reduzido de mapas, e, por isso de preço acessível. Outros foram publicados em fascículos em jornais e revistas de grande tiragem. Houve ainda as versões abreviadas, populares, destinadas aos jovens, e que conheceram bastante sucesso: A voyage round the world in the years 1740-44 [Viagem ao redor do mundo nos anos de 1740-44], relato de George Anson, foi editado pela primeira vez em 1748 e conheceu quinze edições ilustradas com cartas e vistas, até 1776. Atendiam à curiosidade e serviam de entretenimento a um público cada vez mais interessado e atento. Na clandestinidade imposta pelas coroas ibéricas, ciência e entretenimento deram-se as mãos e tornaram conhecido um novo mundo.
Ângela Domingues é pesquisadora do Departamento de Ciências Humanas do Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa e autora de “Viagens científicas e divulgação cartográfica” (in A Nova Lusitânia. Imagens cartográficas do Brasil nas colecções da Biblioteca Nacional (1700-1822), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001).
Contrabando de informações
Ângela Domingues