Conversa fiada do tempo das bandeiras

Vivi Fernandes

  • Não é preciso ir muito longe e muito menos voltar no tempo para encontrar pessoas que falam, em pleno século XXI, o português antigo do século XVII. “Comloio”, em vez de conluio, “fogida”, em vez de fuga, “pedimento”, em vez de pedido, “tapanhumo”, para designar escravo negro, “cria”, para designar os filhos escravos. A constatação é resultado do longo projeto Filologia Bandeirante, criado e coordenado pelo professor Heitor Megale, do Departamento de Letras clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Apresentado à Fapesp em 1996, a iniciativa tem como objetivo analisar a linguagem da colonização presente nas populações de hoje por meio de uma reconstituição das rotas dos bandeirantes.

    Distribuído em quatro núcleos de pesquisa que se encontram nas faculdades de Letras da UFMG, UFMT, UFG e USP, o projeto já apresenta os seus primeiros produtos: o livro Por minha letra e sinal (expressão que os cartórios utilizam até hoje), editado pela Fapesp e pela Ateliê Editorial, lançado em outubro, e três CDs com entrevistas feitas com a população que vive por onde passaram os bandeirantes. A publicação de 400 páginas é o primeiro volume de uma coleção que, segundo Heitor Megale, pode chegar a seis títulos.

    A organização do livro, feita pelo professor Silvio de Almeida Toledo, também da USP, traz reproduções de manuscritos do século XVII, com transcrições feitas linha por linha, a versão moderna dos textos e uma edição semi-diplomática, que apresenta o comportamento da fonética dos vocábulos usados na época. “O objetivo principal do Projeto Filologia Bandeirante é trazer alguma contribuição para o conhecimento, ainda incipiente, do Português do Brasil. Há afirmações a respeito do Português do Brasil que apontam como inovações brasileiras traços de um Português mais antigo. Faltavam pesquisas que permitissem observar o processo de retenção em momentos históricos, no Brasil. Então a proposta foi conferir retenção ou inovação no movimento de busca do ouro, de fins do século XVII e durante o século XVIII”, diz Megale.

  • O processo de trabalho foi dividido em duas frentes. A primeira é composta pelas gravações de conversas com antigos moradores de 41 cidades dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, com baixa ou nenhuma escolaridade. “Selecionamos 23 entrevistas para produzir três CDs, que ficam disponíveis a pesquisadores para consulta”, diz Megale, lembrando que “cada entrevista, na verdade, é uma conversa fiada”, na qual as pessoas contam histórias, falam da vida e da cidade.

    A segunda frente é uma busca a manuscritos, que as equipe do projeto encontraram nos arquivos Nacional (RJ), Mineiro, Goiano, no Instituto de Estudos Brasileiros (SP) e na Cúria Metropolitana (MT). “As entrevistas que fazemos geram dados lingüísticos que nos diz que há pessoas que falam a língua antiga, com pronúncias diferentes. Os manuscritos comprovam isso”, conclui o coordenador do projeto.