Corações valentes

Pablo Rodríguez Jiménez

  • Panteão na Venezuela em homenagem a Bolívar: tributo cívico e simbolismo religioso.Quando Simón Bolívar (1783-1830), herói da libertação da América Hispânica, morreu derrotado pela tuberculose, na Colômbia, foi homenageado com um serviço funerário luxuoso. Mas, ao que parece, seus restos mortais foram separados durante as honras fúnebres: o corpo foi colocado em um féretro e seu coração e “algumas vísceras”, em uma pequena urna. Os documentos não fazem menção a isso, mas assim eles foram encontrados nove anos depois, abaixo da cúpula da catedral, perto das grades do presbitério – onde haviam sido depositados –, após um grande terremoto que afetou a Catedral de Santa Marta, cidade onde ele faleceu.

    Em 1842, quando o corpo de Bolívar foi exumado e seus restos mortais levados para a Venezuela, de acordo com pedido feito em seu testamento, os oficiais, surpresos, encontraram as duas peças funerárias: o caixão e a urna. Foi quando o general Joaquim Posada Gutierrez (1797-1881) solicitou às autoridades governamentais venezuelanas que dessem de presente a urna com o coração de Bolívar à República da Colômbia. O pedido foi aceito, e o coração, em sua urna, permaneceu na Catedral de Santa Marta.

    Mas o “descanso” deste coração não durou muito. No final de 1860, a Colômbia enfrentou uma nova guerra civil, desta vez liderada por Tomás Cipriano Mosquera, contra o governo conservador de Mariano Ospina Rodrigues. Santa Marta, que tinha sido um fortim conservador, foi atacada por diferentes lados por soldados liberais. Pouco a pouco, os conservadores, liderados por Julio Arboleda, perderam terreno e encontraram seu último refúgio na catedral da cidade. No dia 13 de dezembro, quando os ataques contra a catedral se intensificaram, os ocupantes aproveitaram um incêndio que havia sido provocado para fugir. Entre as chamas que consumiram quase toda a catedral estava a única presença física sobrevivente do libertador na Colômbia. Assim o coração de Bolívar foi destruído física e simbolicamente.

    Os funerais em homenagem aos libertadores latino-americanos – não só de Bolívar – foram determinantes para a afirmação do espírito republicano. Os eventos não eram privados e muito menos discretos. Ao contrário, eram festejos públicos que contavam com a presença de autoridades, pessoas influentes e diferentes grupos sociais. O esplendor dessas cerimônias demonstrava gratidão e reconhecimento aos que fizeram tudo pela independência do país. Era como se toda a pátria se reunisse para dar um último adeus aos seus heróis. Finalmente, em frente ao panteão, os oradores ressaltavam a valentia e o sacrifício do ilustre morto. Os heróis, então, atingiam a condição de mitos, assumindo papéis fundamentais na formação das histórias nacionais.

    No entanto, um aspecto que tem passadodespercebido na pesquisa histórica é a importância do coração na simbologia patriótica. A tradição medieval e colonial de venerar relíquias ou partes do corpo humano foi recuperada naquela época, não mais com finalidade exclusivamente religiosa, mas patriótica e republicana. Em diferentes partes da América Hispânica, a preservação da memória dos heróis encontrou no coração seu elemento preferido, tanto por seu forte conteúdo simbólico como por ser mais fácil conservá-los e transportá-los. Segundo a tradição, o coração dos patriotas era depositário das melhores virtudes: bondade, nobreza, valentia, honra e sacrifício. Assim, tornou-se frequente embalsamar seus corações e conservá-los para render-lhes culto e preservar sua memória. Da mesma forma como ocorria com os corpos, os corações tiveram cerimônias religiosas solenes e vistosas, e depois foram depositados em lugares que podiam ser visitados pelo público. Mas, apesar de todo este esmero, por motivo de guerra ou de perda da memória patriótica, estes corações passaram por situações difíceis, terminando em lugares inesperados ou até mesmo desaparecendo para sempre.

    Provavelmente, o coração que recebeu mais homenagens ainda no século XIX foi o do coronel Atanásio Girardot (1791-1813), patriota colombiano que morreu na batalha de Bárbula, em terras venezuelanas, em 30 de setembro de 1813. Embora os exércitos patriotas saíssem vencedores desta batalha, a morte de Girardot deixou de luto todos os que lutavam pela independência. Bolívar, que recebeu com muita tristeza esta notícia, escreveu de próprio punho, no acampamento de Valencia (Venezuela) uma lei de honras pelo patriota morto. O terceiro item determinava que “seu coração será levado com triunfo à capital em Caracas, onde se fará a recepção dos libertadores e será depositado no mausoléu que será erguido na Catedral metropolitana”.

    O traslado do coração de Atanásio Girardot para Caracas e as cerimônias a ele dedicadas ali foram registrados amplamente pela Gazeta de Caracas, o primeiro jornal da Venezuela. O coração foi embalsamado e depositado em um copo de cristal hermeticamente fechado, que, por sua vez, foi guardado em uma urna de madeira de 30 centímetros de altura, adornada com um tecido negro enfeitado com detalhes de ouro fino. No dia 10 de outubro, partiu da cidade de Valencia a comitiva que conduzia a urna, formada por militares, religiosos e autoridades civis. Em cada povoado por onde passavam, eram recebidos por padres com a cruz erguida. O cortejo foi recepcionado na entrada da cidade pelo governo municipal, pelos clérigos da catedral, pelas confrarias e por diferentes personalidades chefiadas por Bolívar. Na pracinha do asilo dos capuchinhos, enfeitada com arcos de triunfo, a comitiva fez a entrega da urna que continha o coração de Girardot. Ali, vários meninos vestidos de anjo tomaram as rédeas da carruagem para se dirigirem à catedral da cidade. O cortejo, agora com uma multidão, marchou a passos lentos, enquanto os religiosos cantavam salmos de ação de graças. Assim que chegaram à catedral, a urna foi levada à capela de São Nicolau de Bari, onde permaneceu iluminada e escoltada por guarda militar.

    O significado simbólico desta cerimônia é evidente. Não se tratava da sepultura de um corpo, mas sim de um fragmento, que na cultura cristã tinha uma identificação precisa. Não é difícil notar que havia uma relação com a imagem do coração de Jesus, uma devoção que a Igreja Católica havia difundido ao longo do período colonial. A própria Companhia de Jesus, uma das ordens mais influentes, adotou o coração de Jesus coroado como seu símbolo. Também caberia lembrar que, no período pré-hispânico, diferentes sociedades, como a maia e a asteca, realizavam rituais nos quais ofertavam corações a seus deuses como oferendas e para pedir favores. O certo é que em cada casa, rica ou pobre, havia uma escultura ou uma pintura alusiva ao coração de Jesus. Normalmente ficava na sala de jantar, onde sua presença velava pela saúde e pela união da família. Tudo isso explica o fato de que Caracas prestou homenagem a essa urna em um momento bastante crucial para a independência da Venezuela.

    Lembrar as honras prestadas aos heróis da independência permite compreender o peso das tradições religiosas na formação da cultura republicana. As grandes cerimônias e festividades religiosas, com suas procissões fervorosas, tiveram continuidade, sendo realizadas tanto para agradecer as vitórias conseguidas nas batalhas como para pedir proteção. Agora, com estas comemorações, prestava-se homenagem aos heróis, transformados em mártires da pátria.

    Outros patriotas se recusaram a ter seus restos mortais transformados em “lugares de memória”. No entanto, após suas mortes, eles receberam, por diferentes motivos, homenagens luxuosas. Foi o caso de José de San Martín (1778-1850), libertador argentino, falecido em Boulogne-sur-Mer, na França. San Martín pediu em seu testamento que não houvesse nenhum ritual de morte e que o levassem diretamente para o cemitério. Mas pediu à filha que seu coração fosse levado para Buenos Aires, sua cidade natal. Trinta anos depois de sua morte, seus restos mortais, com seu coração, cumpriram seu destino. Ao chegarem ao porto, receberam muitas homenagens. Antes de serem depositados na Catedral de Buenos Aires, onde ainda hoje repousam, os restos mortais do general San Martín foram alvo de numerosas demonstrações de reconhecimento patriótico. E lá estava mais um coração homenageado.

    Pablo Rodríguez Jiménez éprofessor da UniversidadNacionaldaColombiae autor de Días de Gloria en la Independencia Hispanoamericana(Universidad del Rosario, 2011).

     

    Saiba Mais

    JOHNSON, Lyman (org.). Death, dismemberment and memory in Latin America. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004.

    McEVOY, Carmen (org.). Funerales republicanos en América del Sur: tradición ritual y nación, 1832-1896. Santiago do Chile: Centro de Estudios Bicentenario, 1996.

    VIGARELLO, Georges et al. (dir.).  História do corpo: da Renascença às Luzes, vol 1.  Petrópolis: Vozes, 2008.

    Internet

    La última enfermedad, los últimos momentos y los funerales del libertador Simón Bolívar por su médico A.P. Réverend. (www.bdigital.unal.edu.co/389/86/La_Ultima_Enfermedad.html )