Petema, peti, petum, betum, pitima, pituma, putu, potu, potum. São todas palavras de origem tupi derivadas da palavra petigma, que designa o fumo ou a folha de fumo. A planta que ficou cientificamente conhecida como Nicotiana tabacum era amplamente conhecida pelos nativos do continente americano quando os europeus aqui chegaram. Parece ter se espalhado pelas Américas – tanto para o norte, quanto para o sul – a partir da península de Yucatán, no atual México. O hábito de fumar folhas de tabaco já era há muito tempo difundido entre os indígenas quando integrantes da expedição de Colombo, em 1492, levaram o fumo para Espanha e Portugal.
O gosto pelo tabaco difundiu-se rapidamente pela Europa, a despeito de seus detratores de então: não bastou a condenação por reis e rainhas da Europa – como Isabel e Jaime I (1556-1625), da Inglaterra, ou Luís XIV da França (1643-1715) – para impedir sua propagação pelo velho continente. Na Inglaterra, por exemplo, o fumo era visto como um estimulante imoral, causador de uma embriaguez que incapacitava o usuário para o trabalho e efeminava os homens. Tampouco, a proibição de seu uso nas igrejas pelos papas Urbano VIII (1642) e Inocêncio X (1650), que se repetiu no Brasil em 1711, serviu de freio à sua propagação.
Em contraste com as campanhas antitabagistas que assistimos hoje, ressaltando os males que acarreta à saúde, o fumo se difundiu pela Europa baseado em sua fama medicinal. É certo que o tabaco de então não corresponde ao fumo industrializado de hoje, com inúmeros aditivos químicos, mas acreditava-se que o tabaco fosse profilático para a peste e remédio para dor de dentes, lombrigas, febres, escorbuto, gota, insônia, dores do parto, além de afrodisíaco. Em Portugal, em meados do século XVI, um padre recomendava o uso do tabaco “para as dores de cabeça; para matar piolhos; para corrimentos; para males do peito; para dores de estômago; para dor de cólica; para dores de juntas; para dor de dentes; para feridas frescas; para chagas velhas”. Não é à toa que era conhecido também como erva-santa!
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Desde os primeiros relatos do contato entre europeus e nativos que a presença do tabaco entre os indígenas foi percebida e descrita. E muitos autores deram notícia dos efeitos benéficos dessa nova erva.
O padre jesuíta Fernão Cardim (1548-1625), em seu Tratado da Terra e Gente do Brasil, descreve a forma pela qual os nativos consumiam o tabaco: “Costumam estes gentios beber fumo de petigma, ou erva santa; esta secam e fazem de uma folha de palma uma canguera, que fica como canudo de cana cheio desta erva, e pondo-lhe o fogo na ponta metem o [lado] mais grosso na boca, e assim estão chupando e bebendo aquele fumo”. Para os indígenas, o uso do fumo tinha caráter ritual (ligado a práticas religiosas), medicinal e servia também como estimulante ou para despistar a fome. Mas logo deixou de ser coisa só dos índios. Em 1587, Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho na Bahia e explorador do interior da capitania contava que a erva caíra no gosto dos “mamelucos [filhos de indígenas com europeus] e dos portugueses, que bebem o fumo dela”. O verbo fumar ainda não constava do vocabulário das línguas européias, e a expressão “beber fumaça” foi utilizada até o século XVII.
Em fins do séc. XVI, já se descrevia o tabaco sendo produzido em meio às hortas das casas dos colonos. Mas levaria ainda algumas boas décadas para que se tornasse um produto importante na economia colonial.
Somente a partir de meados do séc. XVII que a produção de tabaco passou a crescer, deixando de ser um cultivo caseiro, para se espalhar por amplas regiões da colônia portuguesa. Dentre estas, destacaram-se, em ordem decrescente de importância, os campos da Cachoeira e áreas vizinhas, no interior do Recôncavo baiano; algumas regiões da zona da mata da capitania de Pernambuco e o Maranhão. Durante o auge do período da mineração, também nas Minas Gerais e no Rio de Janeiro produziu-se tabaco, mas com menor relevância que nas outras áreas da colônia.
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Os campos da Cachoeira, às margens dos rios Paraguaçu e Jacuípe, incluíam várias freguesias e tornaram-se famosos, ainda no período colonial, por sua produção. Foi aí onde mais se produziu tabaco e com grande qualidade. As terras onde a fumicultura - o plantio de tabaco - veio a se desenvolver, eram de um tipo diferente daquelas propícias à cana-de-açúcar. Esta se dava bem com a terra do tipo massapê. Já o tabaco contentava-se com uma terra mais pobre em nutrientes, terra de “salão” (misto de areia e argila) ou areia, simplesmente. Para compensar a fraqueza do solo, usava-se o adubo animal, mas nem todos os produtores dispunham do gado necessário.
As terras da Cachoeira tiveram que ser conquistadas aos grupos indígenas da região, que não haviam se dobrado aos colonizadores. Só com a derrota e, em alguns casos, extermínio daqueles indígenas pelos “paulistas” – os bandeirantes –, em guerras sucessivas por quase toda a década de 1650, foi possível fixar de vez os colonos na área. Daí em diante, o cultivo do tabaco desenvolveu-se. Triste ironia, a derrota e submissão dos nativos foi uma condição para expandir o cultivo da planta cujo consumo eles mesmos ensinaram aos colonos.
Na capitania de Pernambuco e áreas subordinadas, a produção se deu mais em Itamaracá e Goiana, ao norte, e Serinhaém, Alagoas e vila de S. Francisco, ao sul, às margens do rio de mesmo nome (pertencente, hoje, ao estado de Sergipe). A reputação do tabaco de Pernambuco não era das melhores, sendo considerado inferior em qualidade ao baiano. Ao contrário, o tabaco das Alagoas – produzido, como nas demais áreas, às margens dos maiores rios – era considerado o melhor produzido no Brasil, segundo relatos do período colonial. No entanto, Alagoas produzia uma quantidade muito menor que a Bahia.
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Mal a produção e exportação de tabaco do Brasil ganharam relevo na economia colonial, cresceu o interesse do Estado português sobre essas atividades. Em 1674, para fazer face aos gastos crescentes do reino e à penúria dos cofres estatais, após quase três décadas de guerras para emancipar-se da coroa espanhola (1640-1668), o regente D. Pedro (1667-1683) criou a Junta de Administração do Tabaco. A Junta era responsável por controlar tudo que dizia respeito à importação, produção, comércio e, claro, aos impostos do tabaco, que recaíam principalmente sobre a exportação do Brasil. Nas fábricas do reino (uma em Lisboa e outra no Porto), produziam-se algumas variedades de tabaco em pó: rapé, amostrinha, simonte, estorrinho, da cidade. A maior parte era consumida no reino.
O que restava era exportado em rolos ou manufaturado em pó para o norte da Europa, França, Itália e Espanha e, ainda, para a Índia e a China. Desde início do séc. XVIII, contudo, a produção brasileira perdeu espaço na Europa para a norte-americana. As colônias inglesas da América, no atual sul dos EUA, passaram a exportar um tabaco de melhor qualidade (conhecido como Maryland ou da Virginia, nomes de duas daquelas colônias), em folha, o que facilitava a produção do tabaco em pó. O Brasil, por sua vez, levou quase dois séculos para conseguir produzir aquela variedade em folha, tendo se limitado, antes, a produzi-lo em rolos.
Mesmo com a concorrência no mercado mundial, a produção deste gênero no Brasil chega ao auge no séc. XVIII. Mais uma vez, aqueles que cuidaram de descrever as coisas ou narrar a história da América portuguesa destacaram a importância do fumo. Antonil – pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni (1649-1716) –, ao tratar da Cultura e Opulência do Brasil (1711), dizia que “se o açúcar do Brasil o tem dado a conhecer a todos os reinos e províncias da Europa, o tabaco o tem feito muito mais afamado em todas as quatro partes do mundo”. E tinha ele razão, pois, a exportação não se restringia à Europa, mas alcançava também Ásia e África.
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Transformado em fino pó para ser aspirado, conhecido como rapé, seguia de Portugal para os mares do extremo Oriente nas naus da Índia. Sua venda no chamado Estado da Índia português era monopólio régio, isto é, só era permitido aos agentes do rei e da rainha de Portugal. Produto valioso e consumido tanto por populares quanto pela nobreza, o rapé chegou à China via Macau, para onde era levado por comerciantes.
Mas como se produzia o tabaco no Brasil? A planta exigia muitos cuidados desde a semeadura até o beneficiamento das folhas, tornando o processo bastante complexo. É mais uma vez Antonil quem o diz que “toda a lavra e cultura do tabaco consiste, por sua ordem, em semear, plantar, alimpar, capar, desfolhar, colher, espinicar, torcer, virar, ajuntar, enrolar, encourar e pisar”.
Outra testemunha, Sebastião da Rocha Pita (1661-1738), senhor de engenho na Bahia, dá conta dos caprichos da planta do tabaco, que dizia ser “tão melindrosa, que na sua criação qualquer acidente a destrói”. Para o plantio e beneficiamento, portanto, era necessária muita mão-de-obra.
Enquanto o açúcar era um produto aristocrático, o tabaco era bem mais democrático. A cultura da cana-de-açúcar exigia terra de qualidade e em grandes extensões, além de mão-de-obra escrava, devido às exigências de produtividade e lucratividade de uma lavoura exportadora em grande escala. Já o tabaco iniciou sua produção, na Bahia e em Pernambuco, com a convivência da mão-de-obra livre, familiar, com a produção escravista. E mesmo sendo uma planta sensível, os gastos com seu beneficiamento eram poucos, e esse fato, aliado à possibilidade de ser produzida em pequenas parcelas de terra, fez com que muitos indivíduos pobres e livres recorressem à fumicultura como alternativa econômica. O governador da capitania de Pernambuco, Fernando Martins Mascarenhas de Lancastro, em 1699, disse dos lavradores de tabaco da região que eram “a gente mais pobre do Brasil”.
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Na medida em que a procura por tabaco aumentava, aumentava a presença de proprietários escravistas cultivadores do gênero, sobretudo no Recôncavo. Porém, a ligação entre esta cultura e o escravismo se deu, principalmente, por outras vias.
Como praticamente todos os gêneros que se produziam na colônia, e quase tudo que diz respeito às origens da sociedade brasileira, a história do tabaco tem a marca da escravidão. Enquanto os europeus adquiriam escravos nas costas da África em troca de produtos como tecidos de luxo ou rústicos, armas, pólvora, adornos e ferramentas de metal, entre outros bens, os luso-brasileiros lançavam mão de produtos da terra para o tráfico de escravos. Exportado em rolos, feitos a partir das “cordas de fumo”, o tabaco brasileiro seguia em grandes quantidades para a costa ocidental da África, a bordo dos navios negreiros da Bahia e Pernambuco. Com esses rolos de fumo eram pagos os milhares de escravos trazidos dos portos da região chamada pelos luso-brasileiros de Costa da Mina.
Apenas os “minas” - ou seja, os povos das regiões que hoje compreendem o Togo, o Benin e a Nigéria - adquiriam o tabaco em grande quantidade, consumindo-o na forma de fumo. Produzido especialmente para o tráfico, os rolos eram bem menores que aqueles enviados para a Europa. Além disso, durante o preparo o tabaco era embebido em melaço e ervas aromáticas, o que dava ao fumo um gosto e aroma especiais, fazendo-o particularmente apreciado na Costa da Mina, onde servia para ser “cachimbado”.
Dos quase um milhão e oitocentos mil escravos adquiridos pelos luso-brasileiros na África ocidental ao longo do séc. XVIII, cerca de um terço saiu da baía do Benin e áreas adjacentes da Costa da Mina. No Brasil, os escravos “minas” serviram muito mais ao açúcar e ao ouro que ao tabaco mesmo. Dizia-se, na colônia, que para a mineração, só os escravos minas serviam. E foi, principalmente, a procura mineira por escravos que estimulou a produção de tabaco no Nordeste da colônia, ao ser exportado como “moeda” no tráfico transatlântico.
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O tabaco foi o segundo produto da economia colonial na América portuguesa, ficando atrás apenas do açúcar. Sua produção no Brasil cresceu rapidamente, contribuindo para o abastecimento do mercado mundial. As exportações de tabaco do Brasil colônia atingem seu auge nas últimas três décadas do domínio português e se estende pela primeira década após a independência. Estimulada pelo aumento da demanda dos bens coloniais na Europa, devido à revolução industrial inglesa, o Brasil passa a produzir e exportar como nunca os produtos tropicais: açúcar e algodão, principalmente, mas também tabaco, café, couros, etc. A abertura dos portos brasileiros (1810) decretada por d. João VI (regente e, depois, rei de Portugal), em acordo com a Inglaterra, também contribuiu para o aumento do comércio externo do Brasil.
Dentro da lógica de uma economia escravista, aumento da produção significava maior procura por mão-de-obra, o que levou o tráfico transatlântico ao seu máximo. A Bahia manteve a dianteira como importadora de escravos da baía de Benin, trocando tabaco por africanos que vinham compor o imenso plantel de escravos que sustentou a economia colonial desse lado do Atlântico.
Gustavo Acioli Lopes é mestre em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em história econômica na Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Caminhos e descaminhos do tabaco na economia colonial", artigo publicado na Revista de Humanidades, v. 5, n. 12, outubro/2004.
Correntes de fumaça
Gustavo Acioli Lopes