Batuque na cozinha
Sinhá não quer,
por causa do batuque
eu queimei meu pé
Quem gosta de samba já escutou este refrão de “Batuque na cozinha”, composto por João da Baiana (1887-1974) em 1917, e só gravado em 1968. E provavelmente acompanhou os versos batucando numa mesa ou remexendo as cadeiras. Mas por trás do ritmo contagiante há palavras que dizem mais do que aparentam. Com suas composições, o músico carioca também aproveitava para esboçar críticas ferinas ao regime republicano, naquele momento firmemente empenhado em perseguir a população afro-brasileira.
Seguindo uma estrutura tradicional, a música continha apenas um refrão, em torno do qual se improvisavam novos versos. O tema era lançado na roda e cada um fazia seu comentário ou jogava uma provocação. Por força da tradição, muitos refrões eram transmitidos de geração a geração, atravessando séculos. É bem provável que João da Baiana tenha escutado o tema que inspirou seu batuque em uma das inúmeras festas que frequentou desde criança.
Mesmo crescendo numa cidade livre da escravidão, as memórias daquele tempo ainda estavam bem vivas. Sua mãe fora beneficiada com a Lei do Ventre Livre, mas seus avós haviam sido escravos. E ainda eram capazes de falar, segundo o próprio João da Baiana, “em gegê, angola e nagô”. Na quitanda de artigos afro-brasileiros que seus avós mantinham no Largo da Sé, o menino João da Baiana encontrava africanos e seus descendentes. Morando na Cidade Nova, perto da Praça Onze, coração daquilo que o compositor Heitor dos Prazeres chamou de “África em miniatura”, também devia escutar antigas canções dos cativos e, quem sabe, até mesmo o famoso “Lundu do Pai João”. De autoria desconhecida, essa composição do século XIX fazia uma pesada crítica à sociedade branca. Começava com o lamento de um africano – com forte sotaque – que fora arrancado violentamente da sua região de origem. Enquanto vivia na África, ele era uma pessoa importante e digna, mas no Brasil, na “terra de branco”, transformou-se em mais um escravo:
Quando iô tava na minha tera
Iô chamava capitão
Chega na terra dim baranco
Iô me chama – Pai João
O pior de tudo era a injustiça apresentada em toda a composição. Em uma das estrofes, a letra chega a mostrar que há diferença de tratamento a brancos e negros até depois da morte:
Baranco dize quando more
Jesucrisso que levou,
E o pretinho quando more
Foi cachaça que matou
Estes mesmos versos, talvez compostos na primeira metade do século XIX, seriam reaproveitados em “Ô, Isaura”, um partido-alto de Rubens da Mangueira gravado pela cantora Beth Carvalho em 1978 e regravado 20 anos depois. Mas, desta vez, o branco foi substituído pelo rico e o pretinho, pelo pobre. Em suma, a boa e velha denúncia, presente em muitos outros sambas, indica que, após a Abolição, pouca coisa havia mudado.
Essa tradição de crítica social iria inspirar João da Baiana em sua composição. Batuque era um termo genérico registrado pelos cronistas desde o século XVIII e podia designar diferentes festas e manifestações afro-brasileiras, como lundu, jongo, capoeira e candomblé. Nessa época, também era encarado pelas autoridades judiciárias – e brancas – como sinônimo de briga, desordem e talvez mortes. Por isso, a cozinha, localizada dentro da casa-grande, não era o lugar mais apropriado para se batucar. E era a Sinhá, a senhora de escravos, que não permitia sua prática ali. A referência ao grupo de cativos reunido à roda de uma fogueira também aparece quando se canta “por causa do batuque eu queimei meu pé”. Ou, talvez, o sambista carioca quisesse mostrar que aquele que cantasse na cozinha podia se queimar, ou seja, ser punido.
Numa cidade que pleiteava o título de Paris Tropical, “bárbaros costumes africanos” – como se dizia na época – não podiam ser tolerados. Não foi à toa que sambas e candomblés sofreram com as perseguições policiais por toda a cidade do Rio. O próprio João da Baiana, embora trabalhador regular da estiva desde 1910, pela qual se aposentou com 62 anos de idade, sofrera e muito com esse estado de coisas, chegando a ser preso.
O refrão de “Batuque na cozinha” aponta para a secular repressão aos costumes dos negros no Brasil. Era uma espécie de retomada do tema do “Lundu do Pai João” em um novo momento. Mas sem esquecer que a perseguição sofrida no início do século XX tinha raízes no passado escravista. Assim, os versos da música se colorem de um significado bem mais profundo do que sugerem à primeira vista: a cozinha talvez não seja somente a cozinha real, mas um lugar simbólico do negro na sociedade.
A partir da terceira estrofe, há, como na famosa canção do século XIX, uma denúncia da injustiça dos brancos com os negros, que queriam tudo para si:
Então não bula na cumbuca,
Não me espante o rato,
Se o branco tem ciúme,
Que dirá o mulato
O branco tem ciúme, mas o mulato tem mais ainda. Ele pode até ser desprezado pela sociedade, mas mantém sua honra e defende com ardor sua reputação. De início, tolera os abusos do branco, que quer todas as mulheres:
Eu fui na cozinha pra ver uma cebola,
O branco com ciúme duma tal crioula,
Deixei a cebola, peguei na batata,
O branco com ciúme duma tal mulata,
Peguei no balaio pra medir a farinha,
O branco com ciúme duma tal branquinha
Nos primeiros anos da República, havia muito mais homens do que mulheres no Rio de Janeiro, aproximadamente 56% de homens e 44% de mulheres. Por isso mesmo, os ressentimentos e conflitos gerados por disputas amorosas se multiplicavam. O episódio ocorrido “na cozinha” parece exemplificar uma tendência geral por parte dos brancos a monopolizar para si tudo do bom e do melhor, deixando para o negro somente os restos. Só que, se este limite é ultrapassado, o mulato apela “pra desarmonia”:
Eu voltei na cozinha, pra tomar um café,
O malandro tá com olho na minha mulher,
Mas comigo eu apelei pra desarmonia,
E fomos direto pra Delegacia
Imediatamente entra em cena a polícia. Desde a sua criação em 1809, a Guarda Real da Polícia perseguia os pobres, principalmente os de pele mais escura, culpados até que provassem o contrário. De 1810 a 1821, aforam presas e encarceradas 4.776 pessoas, das quais 99,6% eram negros. Desse percentual, 79,8% eram escravos e 18,8% eram libertos.
Seu Comissário foi dizendo com altivez
É da casa de cômodos da tal Inês,
Revista os dois, bota no xadrez
Malandro comigo não tem vez
O cidadão que está sendo preso, ao defender sua honra ironiza a atitude do Comissário, cuja arrogância é traduzida por “altivez”. A autoridade não se interessa em ouvir depoimentos ou investigar o que ocorreu. Já conclui que, se moram em casas de cômodos, devem ser presos. Esses locais eram habitações populares onde se amontoava a população indesejada pelos reformadores republicanos. Como as favelas de hoje, essas casas eram associadas à violência. Percebendo que “Seu Comissário” era um osso duro de roer, o mulato lança mão da capacidade de argumentar tão característica daqueles que vivem sob vigilância e repressão:
Mas, Seu Comissário, eu estou com a razão,
Eu não moro na casa de habitação
Eu fui apanhar meu violão,
Que estava empenhado com o Salomão
Jogando na casa do adversário, na “terra de branco”, ele não “bate de frente”, recorrendo à lógica da própria autoridade policial. Aceita a ideia de que a casa de cômodos era realmente perigosa. Mas não era por medo que não vivia ali. Queria mesmo era evitar confusão, já que “sempre tem apelação”. Lá pela última estrofe, para escapar da prisão, faz uma oposição entre ele – cidadão a quem haviam faltado com o respeito e que pagaria a fiança com satisfação – e o malandrão, que olhou para a sua mulher:
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez com esse malandrão,
Que faltou com o respeito a um cidadão,
Que é paraíba do Norte, Maranhão
Mas se a querela armada na casa de cômodos era entre um mulato e um branco, João da Baiana não estaria, no fim das contas, chamando o branco de malandrão, dizendo que este sim é que deveria ir preso?
Esta interpretação da letra de “Batuque na Cozinha” acaba revelando um discurso às avessas, contra a injustiça, disfarçado em uma bem-humorada crônica do cotidiano das classes populares. Ao “levar a sério” as letras dessas composições, descortinamos uma tradição oral secular que ainda é mantida para dar conta dos novos (e velhos) desafios enfrentados pela população negra e pobre. Assim, pode-se dizer que João da Baiana, neto de escravos, batia seu pandeiro contra a República. Ou seja: usou seus sambas para fazer pesadas críticas à perseguição que o regime republicano empreendeu contra a população afro-brasileira do Rio de Janeiro.
MARCOS ALVITO é professor na Universidade Federal Fluminense e autor de As cores de Acari (FGV, 2001).
Saiba Mais - Bibliografia
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de cultura.2.ed. 1995.
PIXINGUINHA, BAIANA, João da e DONGA. As vozes desassombradas do Museu. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 1970.
ROCHA, Oswaldo Porto. A Era das Demolições. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 2ª ed., 1995.
Saiba mais - Documentário
“Saravah” de Pierre Barouh, 1969.
Saiba mais - Site
Museu da Imagem e do Som – www.mis.rj.gov.br
Saiba mais - CDs
“Gente da Antiga”. Pixinguinha, Clementina de Jesus e João da Baiana (Odeon, 1968).
“Raízes do Samba”. Pixinguinha (EMI, 1999).
Crítica musical
Marcos Alvito