- O trabalho do arqueólogo em campo carrega a imagem idealizada de uma grande aventura, cercada de perigos e mistérios. Sem dúvida, a escavação de um sítio é a parte mais empolgante do trabalho desses profissionais. Mas são as etapas seguintes, em um paciente trabalho dentro do laboratório, que fornecem a maioria absoluta das informações sobre a vida e a morte dos indivíduos exumados em campo.
Para que um esqueleto humano seja minuciosamente limpo, remontado, inventariado e acondicionado para preservação, é necessário realizar uma série de ações conhecida como curadoria. Os procedimentos aos quais os ossos são submetidos dependem das condições específicas de cada esqueleto, mas devem seguir preceitos básicos para que a intervenção seja mínima e para que, além de garantir sua preservação, o produto final seja passível de análises pormenorizadas.
Nos sítios arqueológicos, os cuidados com o material coletado seguem protocolos rigorosos, que vão da secagem adequada dos ossos ainda no local – evitando a proliferação de fungos e bactérias que danificariam sua estrutura física e química – à proteção de cada fragmento para que a integridade das peças anatômicas seja preservada durante o transporte. Ainda em campo, são retiradas amostras para análise de DNA, de modo a minimizar a contaminação do material.Ao chegarem ao laboratório onde serão curados, os ossos são desembalados e expostos sobre uma bancada única, devidamente identificada. Conferido o material, tem início a remoção dos sedimentos e das impurezas encontradas sobre eles. Mas antes disso é imprescindível separar alguns ossos como amostra testemunho – ou seja, uma parte pequena mas representativa do esqueleto deve ser guardada nas mesmas condições em que foi exumada em campo, para futuras análises químicas dos sedimentos encontrados sobre os ossos, ou deles próprios.Os métodos utilizados na limpeza variam bastante, sendo muitas vezes motivo de discussões acaloradas entre os defensores das distintas opiniões.Para nós, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, a limpeza deve causar a menor interferência possível sobre o material arqueológico. A fragilidade dos ossos, a facilidade de remoção do sedimento depositado sobre eles e a presença ou não de concreções calcárias – muito comuns em esqueletos exumados em cavernas, lapas, grutas e também sambaquis – é que nortearão as atitudes tomadas para remover total ou parcialmente as impurezas da superfície óssea.
A exposição da superfície óssea e dentária é essencial para a análise das patologias ali presentes, das marcas ou evidências de rituais funerários e de modificações corporais intencionais – como
batoques e tembetás (“piercings” tradicionais), modificações da forma craniana (como os alongamentos cranianos das múmias andinas), marcas de corte (evidências de descarne, corte simples ou esquartejamento do corpo), lesões traumáticas acidentais ou violentas e doenças ósseas como infecções ou tumores. Além desses dados que sugerem o estilo de vida do indivíduo analisado, a degradação do esqueleto após a morte, ao longo dos anos, pode informar sobre transformações ecológicas e geológicas ocorridas
na região.
Para a limpeza primária do material escavado na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais – onde estão os esqueletos mais antigos da América, com até 11.500 anos – são utilizadas escovas de dente com cerdas extramacias ou pincéis e água corrente. O uso de instrumentos metálicos é estritamente proibido, pois pode deixar marcas nos ossos que se
confundiriam com marcas de corte originais. Após a primeira higienização a úmido, a avaliação da superfície óssea indica se é necessária uma limpeza química com soluções aquosas de ácidos fracos, para a remoção de concreções calcárias que não puderam ser retiradas com a escovação. E, mesmo com o uso da química, nem sempre se consegue acabar com todas as impurezas aderidas. A total remoção destes ácidos é fundamental para não causar, a longo prazo, danos químicos no interior dos ossos.
Após a etapa da limpeza ocorre a secagem do material, para que se inicie a fase seguinte: a remontagem dos fragmentos, em busca de reconstruir a morfologia original da estrutura óssea do indivíduo. A remontagem do crânio fornece dados fundamentais para o estudo das populações pré-históricas. Ossos longos (dos braços e pernas) e os que formam a pelve (bacia) também possibilitam informações importantes sobre sexo, idade e estatura do esqueleto.
Esse processo é sem dúvida o mais minucioso, demandando dias ou meses de trabalho do bioantropólogo. Todos os fragmentos ósseos são inicialmente presos com fitas adesivas, até o total esgotamento das possibilidades de remontagem entre as partes presentes. A peça anatômica refeita com fitas dá ao profissional a noção da forma que conseguirá obter ao final do processo. O passo seguinte é a remoção dos adesivos e a desconstrução dos fragmentos para que se inicie a segunda remontagem – dessa vez usando cola para fixar os ossos. As colas mais utilizadas para essa finalidade são à base de polímeros (resinas) solúveis em água ou em outro solvente como a acetona. A cola branca solúvel em água é uma boa escolha por ser facilmente removível (caso seja necessário), simples de manusear, eficiente e resistente durante e após o processo de colagem, além de ser um produto barato e acessível.
Finalizada a remontagem, o registro da presença ou da ausência de ossos é feito numa ficha de inventário de sepultamento. Ali também são anotados o estado de conservação do esqueleto como um todo e de cada peça presente, e a ocorrência de pigmentos nos ossos ou de marcas resultantes da ação do fogo. Quando possível, são identificados o sexo e a idade do indivíduo.
Sobre cada osso, em área protegida com esmalte, escreve-se em tinta nanquim a sigla do sítio de origem e o número do sepultamento. Deve-se evitar escrever sobre as superfícies onde os ossos se articulam entre si, por serem áreas importantes para a análise de patologias. O material é embalado em sacos plásticos tipo “zip” e o sepultamento é, por fim, acondicionado em caixas de plástico forradas com plástico-bolha ou manta de polietileno expandido. Todo cuidado é pouco para proteger as peças de possíveis impactos durante o manuseio. Terminada a cura do material, as caixas onde repousam os esqueletos são depositadas em uma sala adequada, chamada de reserva técnica. O ambiente deve ser climatizado, com luminosidade, temperatura e umidade controladas.
Deste ambiente controlado, os esqueletos dos primeiros brasileiros só sairão para “responder inquéritos”. Expostos novamente sobre a bancada, os ossos serão analisados em busca de informações específicas. A qual grupo humano pertenciam? Onde nasceram e por onde andavam? Quais foram as doenças que tiveram e que deixaram marcas indeléveis em seus ossos e dentes? Quais os principais alimentos da dieta desse grupo? Com que idade as crianças desmamavam? Eram caçadores-coletores ou agricultores? Quais as suas principais atividades físicas? Como a vida e a morte de seus familiares eram reverenciadas?
Graças ao cuidadoso processo de curadoria e análise dos esqueletos, hoje já sabemos muito sobre como viveram os primeiros humanos que habitaram o continente.
Rodrigo Elias Oliveira é bioantropólogo, dentista e pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo. Walter Neves é professor da Universidade de São Paulo e autor de Um esqueleto incomoda muita gente (Unicamp, 2013).
Cuidando dos primeiros americanos
Rodrigo Elias Oliveira e Walter Alves Neves