Derrotado, endividado e morto por disenteria, o oitavo filho de D. João I de Portugal, D. Fernando (1402-1443), passou os últimos seis anos de vida de forma vil, e acabou convertido em santo, ícone da história de Portugal. Sua biografia aparentemente “irrelevante” começou a virar um símbolo nacional em 1437, quando ficou preso em terras muçulmanas, em nome da sobrevivência de seu irmão e da manutenção de territórios para a Coroa portuguesa. Assim ele foi das trevas do cárcere à luz da santidade, ao mito do Infante Santo.
Fernando acompanhou de perto o reinado de seu pai (1385-1433), que foi o primeiro monarca da casa de Avis, a segunda dinastia a reinar em Portugal. Nesse período, os navios portugueses eram lançados ao desconhecido repletos de nobres e comerciantes ávidos por riquezas. Foi a época da expansão marítima, que teve início na região do Marrocos em 21 de agosto de 1415, quando milhares de soldados portugueses tomaram Ceuta, surpreendendo os infiéis, ou seja, os islâmicos. Além do orgulho de poder transformar três de seus filhos – D. Duarte (1391-1438), D. Henrique (1394-1460) e D. Pedro (1392-1449) – em cavaleiros por meio de “feitos d’armas”, D. João I pretendia, com a invasão, estreitar os laços com a alta nobreza. Nesse período, a principal função desta categoria era a guerra, e mantê-la em um conflito fora do reino evitaria confrontos internos. Esta postura do rei fazia com que esse grupo não conspirasse contra a própria Coroa. Os conflitos em Ceuta continuaram frequentes ao longo dos anos 1420 e 1430. A alta nobreza e parte do clero que defendiam a permanência da Coroa naquelas terras acabavam se impondo politicamente, dizendo que a guerra era um serviço prestado a Deus.
Para dar prosseguimento a essa política, em 1436 D. Henrique propôs ao seu irmão D. Duarte – que havia assumido o trono com a morte de D. João I – que as tropas portuguesas fossem reunidas para a invasão de Tânger, no Marrocos. Ele acreditava que essa manobra poderia diminuir a pressão sobre Ceuta e expandir a fé. Como política, economia e religião não estavam separadas no século XV, tomar rotas comerciais dos islâmicos para espalhar o cristianismo pelo mundo não era uma prática condenável.
Esse foi um momento importante da expansão portuguesa. A partir da década de 1450, a Coroa investiria em conquistas no noroeste e no norte da África. No final do século, os portugueses explorariam a costa ocidental africana e chegariam ao Oceano Índico. Com a descoberta da América em 1492, seria acirrada a disputa entre Portugal e Espanha, o que levaria os portugueses a explorar o Atlântico Sul e a colonizar o Brasil.
Em 1436, ao aceitar a proposta de D. Henrique, o reipediu ajuda ao papa Eugênio IV (1431-1447), que lhe concedeu uma Bula de Cruzada, determinando que membros do clero fizessem preces e recolhessem recursos para uma expedição militar contra os muçulmanos. A bula também absolvia os pecados de quem se envolvesse na empreitada e garantia ao reino o controle sobre as terras conquistadas. Em 12 de junho de 1436, no Convento do Carmo, em Lisboa, teve início a sua leitura. Em seguida, cartas escritas pelo rei noticiando os preparativos de uma cruzada começaram a circular pela Europa. Uma frota rumo a Tânger deixou Portugal no dia 23 de agosto do ano seguinte, liderada por D. Henrique e tendo D. Fernando no segundo posto de comando. Os dois partiram com cerca de 10.500 homens, número que se mostraria insuficiente para tomar a cidade.
Assim que o exército desembarcou em Ceuta – ponto de apoio para a tomada de Tânger –, D. Henrique ordenou que uma parte dos soldados marchasse por terra e outra seguisse nas naus. Mas acabou cometendo erros estratégicos: deixou a artilharia pesada em Ceuta e se atrasou. Os portugueses, então, passaram de sitiantes a sitiados. Para que não fossem mortos, os muçulmanos impuseram um termo de rendição no dia 17 de outubro. Eles exigiram Ceuta, e, como garantia, manteriam D. Henrique preso enquanto o território não fosse devolvido. Aos portugueses restou aceitar tais condições, mas o refém acabou sendo D. Fernando, que foi capturado com seu confessor, o frei João Álvares, e com outros nobres e criados. Mesmo alarmada com o sequestro do príncipe, a Corte de Portugal nada fez. Era melhor perdê-lo do que entregar Ceuta de mão beijada.
As reais condições do cativeiro de D. Fernando são desconhecidas. A única informação que existe sobre o cativeiro é uma carta escrita pelo príncipe para D. Pedro em 12 de junho de 1441. Nela, D. Fernando implora que alguém faça algo para ajudá-lo a se livrar do cativeiro, e solicita dinheiro para pagar dívidas, contraídas com um judeu de nome Cristóvão Xalóm – que foi à falência devido aos empréstimos feitos ao infante. Endividado, ele viveu seus últimos anos na penúria do cativeiro. D. Fernando acabaria morrendo de disenteria, mas nada disso o impediu de ganhar o status de santo a partir dos anos 1450.
Isso porque, desde 1438, com a morte de D. Duarte, Portugal estava mergulhado em crises sucessórias. O herdeiro, D. Afonso V, tinha apenas seis anos, e quando atingiu a maioridade – na época, aos 14 anos – em 1446, não pôde vestir a coroa. Seu tio, D. Pedro, temia que ele pudesse ser influenciado por seus inimigos, inclusive D. Henrique, com o qual mantinha rusgas desde as campanhas na África. No final de 1448, as hostilidades entre tio e sobrinho cresceram e deram início à chamada Guerra Civil, na qual D. Pedro contou com cerca de 1.200 cavaleiros e 2.300 guerreiros a pé, enquanto as tropas da Coroa somavam cerca de 16 mil homens. D. Pedro foi perseguido até ser morto.
O reinado de D. Afonso V, por ter sido confirmado com uma guerra, não foi considerado legítimo por boa parte dos portugueses. Com a intenção de aumentar a coesão do reino, os vencedores da Guerra Civil exploraram o culto a D. Fernando em uma história comovente: os duros anos vividos pelo príncipe começaram a se tornar o martírio do Infante Santo. D. Henrique e o então rei D. Afonso V encomendaram uma hagiografia – livro que conta a história de um santo – ao frei Álvares.
Durante o ano de 1450, o religioso escreveu O tratado da vida e feitos do muito vertuoso Sr. Infante D. Fernando. De acordo com a obra, D. Fernando ficou preso em Arzila entre 22 de outubro de 1437 e 25 de maio de 1438, sendo que na viagem de Tânger até o local de seu cativeiro ele teria até passado fome. Quando saiu da masmorra, o infante foi forçado a trabalhar para os muçulmanos, uma das piores humilhações que se poderia impor a um príncipe cristão. Em março de 1443, ele foi separado dos companheiros de cela, e em junho, com a saúde debilitada pela doença, teve que ser tirado do isolamento e receber a ajuda de seu capelão, de seu físico – médico – e do confessor.
Segundo a hagiografia, antes do embarque para a África o príncipe já sabia que morreria. Por isso, entregou-se no lugar do irmão, para que o sofrimento pelo qual certamente passaria pudesse honrar sua família. Isso fica claro numa passagem que relata uma audiência que o infante teve com Lahezencalzal, amigo íntimo de Lazareque – governador de Fez, cidade do Marrocos: “Antes de tudo, gostaria que Vossa Excelência soubesse que não foi pela força das armas ou por fraude, mas por livre e espontânea vontade que eu e meus companheiros nos entregamos em vossas mãos, como condição de que Ceuta voltasse a vossas mãos e para que cada povo, com sua lei, ficasse livre, e eu também. Por isso, parece-me que não deveríeis tratar tão cruelmente a estes meus companheiros que são inocentes. Dizei, portanto, ao vosso Senhor que me castigue a mim só, e os poupe”. E assim o sofrimento de Fernando – que existiu – acabou transformado em um fato heroico.
Como nos anos 1450 havia a necessidade de uma desculpa para que novos ataques fossem feitos ao Marrocos, por que não lembrar aos portugueses que um príncipe havia morrido por isso? Com base nesse culto, o monarca conseguiu reorganizar o projeto de Avis, que demonstrava aos portugueses que os sucessos na África faziam parte da vontade divina. A derrota em Tânger abalou esta crença. Mas o sofrimento de D. Fernando foi usado como ato “penitencial” de todos os portugueses. Sua morte foi utilizada para reformular esse projeto: o lugar de sacrifício do mártir era transformado em “lugar santo”, e isto concedia a Portugal o direito de tomar territórios aos infiéis.
A associação feita na hagiografia serviu como uma luva para os anseios da Coroa: da mesma forma que Cristo sofreu nas mãos dos ímpios para salvar a humanidade, D. Fernando comeria o pão que o diabo amassou para que os portugueses fossem gloriosos em suas conquistas. Nascia com isso o mito do Infante Santo, que salvaria o projeto expansionista português e lhe daria legitimidade religiosa.
Clinio de Oliveira Amaralé professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de “A relação entre o culto ao Infante Santo e o projeto político de Avis na segunda metade do século XV”. In: NOGUEIRA, Carlos (org.). O Portugal medieval: monarquia e sociedade (Alameda, 2010).
Saiba Mais - Bibliografia
FONTES, João Luís Inglês. Percursos e memória: Do Infante D. Fernando ao Infante Santo. Cascais: Patrimonia, 2000.
REBELO, António Manuel Ribeiro. A vida do Infante Santo. Apelação: Paulus, 2003.
ROSA, Maria de Lurdes. “Do “santo conde” ao mourisco mártir: usos da santidade no contexto da guerra norte-africana (1415-1521)”. In: Deutsches Historisches Museum. “Novos mundos: Portugal e a época dos descobrimentos”. Ciclo de conferências de 24 de outubro de 2007 a 10 de fevereiro de 2008. Disponível em www.dhm.de/ausstellungen/neue-welten/pt/essays.html
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