Poucos hábitos podem ser tão simples quanto comer uma banana, certo? Nem tanto. Para degustá-la corretamente, é preciso cumprir um minucioso e delicado ritual: “Segura-se a fruta com a mão esquerda; com a faca na mão direita, parte-se a casca em quatro partes longitudinais; separa-se o fruto, come-se a polpa de duas maneiras: 1ª) Mantendo a fruta na mão esquerda, ainda presa à casca, leva-se à boca em pedaços com o dorso do garfo na mão direita, à medida que se vai cortando; 2ª) Separada a casca, deixa-se a fruta no prato, parte-se com o garfo em pedaços, ao passo que se vai comendo”. Em resumo, descascar com a mão e abocanhar, nem pensar!
Este ensinamento é apenas uma das muitas regras de comportamento e etiqueta contidas no livro Boas maneiras: manual de civilidade, uma obra rara que, apesar da classificação, encontra-se na Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional. A instituição possui a segunda edição do livro, de 1936, e embora não seja fácil precisar o ano do lançamento da primeira, uma rápida pesquisa mostra que o livro foi um grande sucesso de vendas – depois de sucessivas tiragens em 1939, 1942, 1944, 1946 e 1956, chegou em 1958 à 11ª edição! Em sebos virtuais na Internet, o livro é apresentado como exemplar raro de obra de auto-ajuda, e pode ser encontrado, em suas várias edições, em lojas do Ceará ao Rio Grande do Sul.
Carmen D’ Ávila, uma senhora sobre a qual não é muito fácil encontrar referências, é a autora deste fenômeno editorial. Em Lições de casa, a professora Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi chamou a atenção para a circulação de manuais na Corte durante o século XIX, entre outros veículos de informação destinados à mulher e à família. Destacou o seu caráter “pedagógico” e identificou-os como “propostas de moldagem social” em diferentes países e momentos históricos.
O manual de civilidade de Carmen D’ Ávila, que confessa ter aprendido tudo o que escreveu a partir de uma “convivência fidalga” – o que talvez seja uma pista sobre sua origem –, é repleto de referências históricas usadas para ilustrar as diversas normas de comportamento. O beijo, por exemplo, “foi sempre usado em todos os ritos; e os cumprimentos beijocativos (sic), que perduraram até o século XVII, só desapareceram quando a Sr.ª Higiene começou a imiscuir-se nos tratados de civilidade”. Com delicadeza e uma ponta de ironia, a autora se refere ao discurso dos higienistas, que consideravam o beijo transmissor de doenças. Não menos perigosos para D. Carmen eram os elevadores: “Produto do arranha-céu, recinto anti-higiênico, veículo coletivo sempre incômodo (...) os ascensores precisam ao menos ter o adorno das boas maneiras” – todos sabem muito bem por quê.
As referências históricas são evocadas para demonstrar a pertinência de certas regras de bom-tom. Em aquarelas de Rugendas, a autora identifica um tratamento adequado às senhoras: “Verifica-se a delicadeza das caravanas mineiras, onde as senhoras caminhavam sempre à direita”. Mas algumas citações precisam ser vistas com cuidado. Ao se referir à continência na alimentação, Carmen D’ Ávila menciona que “em 1763, o marquês de Pombal, ao ver como se comia desordenadamente, mesmo no Paço, publicou um regulamento de ucharia e cozinha da Casa Real estatuindo a sobriedade”.
Ora, o decreto que restringiu as despesas da Real Ucharia (depósito de alimentos) é de 1765 e não surgiu simplesmente porque Pombal estava incomodado com os maus modos dos cortesãos. Fez parte de um conjunto mais amplo e sério de medidas de contenção de despesas e de reorganização financeira em Portugal, que incluiu desde a diminuição dos gastos dos nobres com os casamentos de seus filhos até a criação do Erário Régio, que controlava as finanças de Portugal e de seu Império colonial.
A intenção de contribuir para moldar procedimentos e atitudes não significa, porém, que D. Carmen não estivesse atenta aos exageros no uso da etiqueta: “Há pessoas incivis por excesso de civilidade”. Para comprovar, recorre a uma espécie de anedota histórica: “Houve no tempo de D. João VI um general apelidado o grão-de-bico, que ordenou que todo soldado se perfilasse e fizesse a devida continência ao avistar qualquer oficial. A esta ordem fez o major Pimenta a seguinte epigrama: Mandou certo comandante/ A um soldado noviço/ Que fosse entregar depressa/ Duas cartas de serviço/ Em menos de um quarto d’ hora/ Fiz as duas diligências/ E gastei o dia inteiro/ Em fazer as continências”.
As normas de conduta apresentadas nos manuais de boas maneiras espelham os valores de uma época. É compreensível, portanto, que regras para receber, convidar, andar de automóvel, vestir o luto ou simplesmente atender o telefone às vezes mudem radicalmente.
Da difícil arte de ser educado
Fabiano Vilaça