De Brodósqui para o mundo

Marilia Balbi

  • Nem só de povo sofrido, miséria, homem de enxada na mão e pés na terra vive a obra de Candido Portinari (1903-1962). A alegria dos jogos infantis, a cambalhota, o futebol e as brincadeiras de pular carniça e soltar pipa, lembranças de Brodósqui, interior de São Paulo, onde nasceu, também compõem seu universo temático. Pintando a partir de sua vila, o artista plástico conseguiu revelar várias faces do homem brasileiro, retratar nossos ciclos econômicos e nossa história. Fez, enfim, um retrato do Brasil e de sua gente. Mas sua repercussão foi muito além. A obra de Portinari encanta olhos e corações em todo o mundo, conquistando o posto de arte universal.
     
    É possível conhecer um século de transformações no Brasil, com destaque para a vida do trabalhador, via Portinari. O grande amigo Mário de Andrade, rastreador da trajetória do artista, apontou suas qualidades por meio de conselhos e elogios, como este, de 1935: “A obra de Portinari é a mais exemplar aventura de arte que já se viveu no Brasil”.
     
    Reminiscências da infância do paulista repercutiram nos trabalhos da maturidade, nos flagrantes de trabalhadores, especialmente nos detalhes de homens e mulheres sofridos que soube retratar tão bem. Pés e mãos agigantados, em particular, valeram-lhe o epíteto de “pintor-dos-pés-grandes”. Foi ele quem colocou nas telas pela primeira vez a desigualdade social das favelas do Rio de Janeiro e a difícil travessia dos nordestinos para o sudeste em busca de trabalho, fugindo da seca. Estes estão retratados na série Os Retirantes. Muitos chegaram mortos, carregados em redes, como num retrato de Vidas Secas (1938), romance de Graciliano Ramos, também amigo do artista. 
     
    Portinari eternizou sua cidade natal ao pintar a terra roxa do interior paulista. Homens e mulheres na labuta diária do campo formam a obra Paisagem de Brodósqui. Foi naquele cenário, em uma fazenda de café próxima a um pequeno vilarejo com 700 habitantes, que o pintor nasceu, em 30 de dezembro de 1903. Era o segundo de 12 filhos de Baptista Portinari e Dominga Torquato, ambos italianos da região do Vêneto. Na fazenda Santa Rosa viviam os pais, a avó materna, um tio e uma tia pelo lado paterno.  
     
    Quando se mudou para a estação de Brodósqui, a casa da família ficava atrás da igreja matriz, dedicada a Santo Antônio. Dali se podia ouvir a música e as festas ao redor, que também influenciaram seu trabalho, como pode ser visto na tela Baile na Roça, resgatada nos anos 1990. Obras como Casamento na Roça recuperaram a gente simples da infância do artista. Em Mestiço, ele elogia a miscigenação brasileira. Em Colona, um detalhe da premiada tela Café – a primeira criação de sua autoria a receber reconhecimento internacional, com prêmio na exposição internacional do Instituto Carnegie, Estados Unidos, na qual participaram 21 países – evidencia sua vontade de trazer o trabalhador para o primeiro plano. 
     
    Desde o início dos anos 1930, Portinari elege a realidade brasileira como tema preferencial de sua pintura. Além de dar destaque à figura do trabalhador, tinha o intuito humanista de revelar a grandeza e a importância do homem. Com a repercussão alcançada pela obra Café, o ministro Gustavo Capanema encomendou, em 1936, a série de afrescos para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. O tema, em plena Era Vargas, era nacionalista: os ciclos econômicos brasileiros. As obras constavam do projeto ambicioso da futura sede da pasta, que se tornaria um marco na nova arquitetura nacional. Com consultoria do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, a construção teve a participação de profissionais liderados por Lúcio Costa, entre eles Oscar Niemeyer, e ganhou intervenção paisagística assinada por Burle Marx. Os 12 temas escolhidos para os painéis de Portinari, concluídos em 1943, foram pau-brasil, cana-de-açúcar, gado, garimpo, fumo, algodão, erva-mate, café, cacau, ferro, borracha e carnaúba.
     
    O pintor inovou ao utilizar o afresco como técnica em pintura mural, que foi pioneira no Brasil. O afresco é uma técnica de pintura em paredes ou tetos de gesso, ou revestidas com argamassa ainda fresca. Portinari utiliza os afrescos forjando uma visualidade segundo os valores da arte Renascentista, quando os temas poderiam ser apreendidos através da contemplação da pintura. O homem no centro e tema dos ciclos econômicos, como força de trabalho e construtor de sua própria história. A partir deste trabalho, enviado ao Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York, em 1939, o artista dá o passo definitivo para se tornar internacionalmente conhecido. O pavilhão projetado por Lúcio Costa e Oscar Niemayer lançaria o menino de Brodósqui de uma vez por todas no mercado de arte norte-americano. 
     
    Em 1940, já estava pintando os murais da Biblioteca Nacional do Congresso americano, em Washington, primeiro painel de temática histórica a narrar a saga das Américas. Em seguida, passou a contar a trajetória de seu próprio país com obras que se tornaram emblemáticas na história nacional. Exemplos são a Primeira Missa (1948), Tiradentes (1949), produzida para o Colégio Cataguases, hoje acervo do Salão de Atos do Memorial da América Latina, em São Paulo, Coluna Prestes (1950), Chegada da família real portuguesa à Bahia (1952) e Descobrimento do Brasil (1954). 
     
    Convidado a executar os painéis Guerra e Paz, obra monumental para o hall dos delegados da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1957, em Nova York, foi o grande ausente da festa de inauguração. Era o auge do macarthismo, a doutrina de proteção americana contra ações supostamente subversivas, cujo expoente foi o senador Joseph MacCarthy. Portinari era um declarado comunista e já havia se candidatado à Câmara Federal, em 1945, e ao Senado, em 1947, pelo Partido Comunista do Brasil. Não conseguiu visto de entrada nos Estados Unidos.  
     
    O episódio envolvendo os painéis da ONU foi apenas mais um constrangimento a que o pintor foi submetido. Como diversos artistas, Portinari foi perseguido, cerceado e estigmatizado pelas suas posições de esquerda. A polícia política brasileira acompanhou seus passos durante décadas. O Departamento Estadual de Ordem Política Social (Deops) acumulou notícias a seu respeito até mesmo depois que morreu.
    Candido Portinari legou, ainda, um paradoxo a ser desvendado pela história da arte. Militante comunista, foi simultaneamente um dos maiores pintores da temática religiosa no país. São dezenas de composições de anjos, passagens do Velho e do Novo Testamento, passos da Sagrada Família, duas vias sacras – uma na igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, outra em Batatais, interior de São Paulo – marcantes imagens de Santo Antonio e São Francisco, além de 14 Ceias Sagradas. A obra com esta temática começou a ser construída cedo, a partir da capela da nonna, nos jardins da casa que o pintor mandou construir em 1941 para a avó, dona Pellegrina, que não conseguia caminhar até a matriz de Brodósqui.
     
    O artista tinha enorme confiança em seu trabalho e em sua capacidade de resolver dificuldades dentro da arte. Seu prestígio se manteve praticamente inabalado até 1951, quando foi criada a exposição Bienal de São Paulo e a abstração começou a conquistar adeptos, em detrimento da pintura realista. Mesmo assim, ao adoecer gravemente na década de 1950, já era considerado o maior pintor brasileiro. Tão dedicado que se tornou prisioneiro de seu ateliê: não queria perder um minuto de trabalho. Suas pinceladas eram feitas com amor. Quando foi impedido de produzir por causa da intoxicação com as tintas, deu a medida do impacto que isto significava para ele: “Estou proibido de viver”. 
     
    Durante várias décadas, Portinari ficou estigmatizado como pintor da Era Vargas (1930-1945). Mas a justiça foi feita em escala muito maior e mais perene. Hoje sua arte é reconhecida por sua habilidade de pintar um país em crescimento e de grandes desigualdades sociais e, sem perder o enfoque local, comunicar-se também com a sensibilidade estrangeira. Mesmo no púlpito da ONU, Brodósqui tem o que dizer. 
     
    Marilia Balbi é jornalista e autora de Portinari: Pintor do Brasil (Boitempo, 2003). 
     
    Saiba Mais
     
    FABRIS, Annateresa (introdução e notas). Portinari, amico mio: cartas de Mário de Andrade a Cândido Portinari. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1995.
    PENNA, Christina S. Gabaglia (org.). Catálogo Raisonné. Cândido Portinari. 5 vols. Rio de Janeiro: Projeto Portinari, 2004.