De gota em gota

Filomena Pugliese Fonseca / Dalmo Dippold Vilar

  • Mapa da cidade de São Paulo / FBNOs primeiros aquedutos de São Paulo foram fruto de um improviso bem-sucedido. Na época, os telhados das casas eram feitos com telhas tipo capa e canal, vulgarmente conhecidas como telhas de coxa. Para passar do teto ao chão, bastou criatividade: quando colocadas no sentido inverso ao que se usa no telhado, formavam verdadeiros dutos para a passagem de água.

    Fundada em 1554, a cidade demorou quase dois séculos para ver o início de um sistema de fontes públicas. O primeiro chafariz foi construído apenas em 1744, ao lado do largo de São Francisco, alimentado por um aqueduto de telhas de coxa imbricadas umas nas outras. Ele corria a céu aberto e conduzia a água do rio Anhangabaú também para o chafariz do Tebas, construído mais tarde no largo da Misericórdia, próximo à atual praça da Sé, marco zero de São Paulo.      

    Na segunda metade daquele século, diante dos clamores da população sedenta exigindo solução para o grave problema do abastecimento, as autoridades tomaram uma providência: as águas do Anhangabaú foram represadas em dois tanques. Mas não havia qualquer preocupação com a qualidade das águas. Um desses tanques era abastecido com águas que passavam por vala descoberta e atravessavam locais cujo ar era fétido e o chão juncado de caveiras de boi, sabugos, chifres, ossos e outros resíduos imundos provenientes do matadouro municipal. A primeira análise conhecida da qualidade da água para consumo público em São Paulo foi feita pelo astrônomo e geógrafo português Bento Sanches D’Orta, em 1791, a pedido do então governador da capitania, Bernardo José de Lorena. O resultado confirmou a situação de insalubridade, mas nenhuma providência foi tomada. 

    Os chafarizes tinham papel relevante para matar a sede dos paulistanos. A preferência para a sua construção recaía em pontos de encontro de um número razoável de pessoas, em especial nas proximidades das igrejas. Elas foram o centro de atração do núcleo urbano ao longo dos séculos XVIII e XIX, com o poder de congregar os habitantes nas missas dominicais e nas procissões obrigatórias.Nos ambientes de convivência da camada menos favorecida da população, os chafarizes causavam certos distúrbios sociais, como o grande número de mulheres cativas e alforriadas que eram abordadas pelos frequentadores das fontes. A situação levou a Câmara Municipal, na metade do século XVIII, a definir que “qualquer mancebo, solteiro ou casado, que se achar pegando alguma negra que vá à fonte ou ao rio, pague 50 réis para o Conselho e, pela segunda, 100 réis”.

    Ao longo do século XIX, agrava-se a crise no abastecimento. Surge então uma figura peculiar: a dos “aguadeiros”, que devido à dificuldade no transporte das águas dos chafarizes e dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, levavam-nas à porta das casas em pipas puxadas por burros. Os moradores adquiriam os barris ou potes, que correspondiam a uma marca de carvão na parede. No final do mês, computavam-se as marcas e a conta era paga à razão de 40 a 80 réis por barril de 20 litros.

    A mão de obra imigrante impulsionou o crescimento demográfico a partir de 1867, gerando ocupação desordenada do espaço urbano. O abastecimento de água tornava-se crítico, o que levou o governo da Província a realizar obra inédita de substituição do antigo sistema de telhas de coxa por encanamentos de ferro, captando a água do córrego Anhangabaú e levando-a para diversos chafarizes.  No dia da inauguração daquela que parecia ser a obra do século, nenhuma gota d’água chegou às torneiras públicas: o engenheiro equivocara-se com o diâmetro da tubulação. Dois anos depois, o engenheiro militar Azevedo Marques empregou técnica inédita de canalização, com tubos de papelão revestidos de betume, que levavam as águas do tanque do Reúno para o chafariz do Piques, e daí para o Jardim da Luz. A manufatura desses canos era feita pelo próprio inventor, no local onde funcionou o antigo Hospício de Alienados, então desativado, na atual avenida São João, nas proximidades da rua Aurora. O sistema durou aproximadamente oito anos.

    Esgotadas todas as tentativas do poder público de erradicar a secular falta d’água na cidade, o governo provincial transferiu para a iniciativa privada a incumbência de implantar e explorar um sistema eficaz de abastecimento público, o que ocorreu em 1877, com a criação da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos. Em 1881, os prédios do centro da capital e os chafarizes públicos passaram a ser abastecidos com águas captadas na Serra da Cantareira, através de encanamentos de ferro fundido num percurso de aproximadamente 15 quilômetros, até chegar à recém-inaugurada caixa d’água da Consolação. São Paulo entrava, enfim, no período de captação – deixando para trás os tempos de “catação” de água.

    Nos anos posteriores, porém, a empresa não conseguiu acompanhar a demanda que a explosão demográfica e o surto de desenvolvimento da cidade exigiam, levando o governo do estado a encampar a companhia em 1892 e a criar a Repartição de Águas e Esgotos (RAE). Foi quando se expediu a ordem para que todos os chafarizes da cidade fossem destruídos. Acabou a distribuição de águas livres, o que gerou grande revolta na população.

    A cidade continuava a crescer, com valorização territorial das regiões localizadas em suas partes altas, abastecidas pelas águas da Serra da Cantareira, consideradas puras. Como consequência, a população de baixa renda concentrou-se nas áreas vizinhas às várzeas, em cortiços situados próximos às fábricas e às estradas de ferro, dando origem aos bairros operários da Mooca, Brás, Belenzinho e Penha.            Em 1903, a RAE utiliza as águas do rio Tietê para abastecer essa parte da cidade e, a partir de então, seus habitantes passam a sofrer de moléstias infecto-contagiosas típicas de veiculação hídrica, como a febre tifóide, uma das principais causas de mortalidade infantil. Mas as autoridades não acreditavam que a qualidade das águas tivesse relação com as epidemias. Saturnino de Brito (1864-1929) cita no volume III em Obras Completas de 1943o que disse o diretor do Serviço Sanitário, Sr. Dr. Emilio Ribas (1862-1925), sobre o abastecimento pelo rio Tietê, convenientemente tratado, mas que não resolveria a questão da salubridade do bairro operário do Brás: “aquele em que se aglomera a população menos asseada, em que as edificações são menos ‘sanitárias’ e em que o terreno, baixo e úmido, por si deveria concorrer para a depressão mórbida na constituição médica regional”.

    O aproveitamento do Tietê seria possível com um eficaz tratamento de suas águas, mas o rio foi abandonado à própria sorte por existirem, segundo o governo, locais de captação de águas mais puras e cristalinas, como ocorreu com a construção de três grandes reservatórios ou lagos artificiais – do Engordador, Guaraú e Cabuçu – localizados no atual Parque Estadual da Cantareira. Em 1908, foi inaugurada a barragem do Cabuçu, primeira grande obra de concreto armado no país. A cidade já contava então com cerca de 400 mil habitantes, e o novo reservatório determinou o fim da elitização na distribuição do precioso líquido, uma vez que nessa época as águas da Serra da Cantareira abasteciam os bairros nobres e o centro comercial da cidade de São Paulo. Os bairros proletários deixaram de ser abastecidos pelo poluído rio Tietê, que tantas vítimas fez com suas águas pestilentas, principalmente entre a população infantil.

    O conforto e o bem-estar proporcionados pela água encanada para a maior parte da população encobrem toda uma luta de superação do homem em relação ao seu meio físico. As vozes do passado podem ampliar a conscientização popular para o uso racional da água, grande preocupação do novo milênio. Embora o Brasil tenha uma das maiores reservas hídricas do mundo, a água é finita: líquida, mas não é certa.

     

    Filomena Pugliese Fonseca é arqueóloga, pós-doutoranda em História da Ciência na Universidade de São Paulo, e autora da tese “As águas do passado e os reservatórios do Guaraú, Engordador e Cabuçu: um estudo de Arqueologia Industrial”, (USP, 2008).

    Dalmo Dippold Vilar é arqueólogo, pós-doutorando em História da Ciência na Universidade de São Paulo, e autor da tese “Água aos cântaros – Os reservatórios da Cantareira: um estudo de Arqueologia Industrial”, (USP, 2008).

     

    Saiba Mais

    COSTA, Luiz Augusto Maia. Oideário urbano paulista na virada do século. São Paulo: Editora Rima, 2003.

    FREITAS, Afonso A. de. Tradições e Reminiscências Paulistanas. São Paulo: Gov. do Estado, 1978.

    KAHTOUNI Saide. Cidade das águas. São Paulo: Ed. Rima, 2004.