- Era um dia nublado de junho quando o fotógrafo João Gutierrez retratou uma bateria de artilharia na vila de Monte Santo, durante a quarta expedição militar contra o Arraial de Canudos. "João" era Juan, espanhol naturalizado brasileiro e incorporado ao Exército, através de portaria do Ministério da Guerra, como capitão honorário – "sem direito, porém, à ajuda de custo". Era, portanto, um voluntário.Acompanhava o general João da Silva Barbosa, comandante da primeira coluna da expedição, como ajudante de ordens. Mas sua principal missão seria fotografar as operações militares. Tinha experiência no ofício. Quando chegou ao Brasil vindo de Portugal, em 1888, já era um “operador” respeitado na Photographia União, tradicional atelier da cidade do Porto. Estabelecido no Rio de Janeiro, inaugurou a Photographia União na rua da Carioca, e chegou a receber o título de Photographo da Casa Imperial. Proclamada a República, aderiu à nova ordem e no seu atelier foram retratados importantes líderes do regime. Quando foi para Canudos, era proprietário da Companhia Photographica Brazileira.No palco da guerra, Gutierrez usaria não só os apetrechos da sua profissão como também os armamentos necessários para os combates. Estava preparado para enfrentá-los: era capitão da Guarda Nacional e em 1891 tinha sido nomeado tenente do 1º Regimento de Cavalaria. Com a mesma patente, fotografou e combateu durante a Revolta da Armada (1893). Segundo o tenente Frederico Luiz da Costa, seu contemporâneo, na época o fotógrafo comandou um esquadrão do mesmo regimento e foi elogiado pelo então coronel João da Silva Barbosa, seu amigo.Naquele ano de 1897, logo depois da derrota da expedição Moreira César no sertão baiano, Gutierrez dizia insistentemente aos amigos que a República precisava ser vingada e que ele deveria marchar para defendê-la. Era um republicano exaltado e não adiantaram os pedidos e as ponderações para demovê-lo da ideia. No dia 31 de março embarcou no vapor Cordillère acompanhando Barbosa. Depois de uma curta permanência em Salvador, tomaram um trem na Estação da Calçada e foram para Queimadas. Lá se apresentaram ao general Artur Oscar, comandante da quarta expedição militar.
A pacata vila de Santo Antônio das Queimadas tinha se transformado numa base de operações. Com a chegada dos batalhões, foi imposta a rotina da oficialidade e soldadesca. Às 7h da manhã, as tropas entravam em forma e logo depois começavam os repetidos toques dos corneteiros anunciando os detalhes da ordem do dia. Gutierrez fotografou os preparativos militares e, quando foi para Monte Santo, deixou o material produzido sob a guarda do capitão Dr. Álvaro Telles de Menezes, médico que servia na enfermaria militar.
A segunda base de operações também se transformou numa praça de guerra e o fotógrafo documentou o seu cotidiano. Ficou cerca de duas semanas em Monte Santo e antes de partir para Canudos teve o mesmo cuidado com as fotografias: deixou-as sob a proteção de uma pessoa da sua confiança, agora o major Martiniano José Alves Ferreira, comandante da praça militar.As tropas da primeira coluna da expedição Artur Oscar tiveram o seu batismo de sangue no dia 27 de junho, quando foram encurraladas pelos defensores de Canudos no local que ficou conhecido como Vale da Morte. Na manhã seguinte, tentaram tomar a Fazenda Velha, trincheira conselheirista, investindo do Alto da Favela. Durante o combate, o fotógrafo e combatente João Gutierrez morreu com um tiro no peito. Segundo uma testemunha da cena, "algumas malas, papéis e outros objetos" ficaram sob a guarda do general Barbosa. Entre os pertences, uma máquina fotográfica.João Gutierrez completaria 34 anos em setembro. Os guardiães dos seus bens sobreviveram ao conflito, mas coube a Martiniano devolvê-los a quem de direito. Depois de ter sido dispensado do comando da Praça de Monte Santo, foi para Salvador e embarcou rumo ao Rio de Janeiro. Segundo o Diário de Pernambuco, ele levava "os clichês de Canudos, da Companhia Photographica Brazileira". Certamente eram as fotografias de Gutierrez, proprietário da empresa.Depois da morte de João Gutierrez, passaram-se mais de dois meses até que outro fotógrafo chegasse ao palco do conflito. Chamava-se Augusto Flávio de Barros e foi para Queimadas com a comitiva do ministro da Guerra, Carlos Machado Bittencourt. Tinha mais de 40 anos e era um estreante na profissão. Da viagem de Queimadas a Monte Santo, Barros deixou poucos registros, mas quando chegou na segunda base de operações militares trabalhou intensamente. Alfredo Silva, correspondente do jornal fluminense A Notícia, estava na vila e anotou que o fotógrafo tinha a "intenção de adquirir os retratos da oficialidade de todos os batalhões, como também diversos golpes de vista no percurso até Canudos. Infelizmente, não podendo dispor aqui de câmara em que realize os seus delicados trabalhos, esse artista aguarda sua volta à Bahia para então poder terminá-los". Ao contrário de Gutierrez, que nas suas bagagens tinha levado os objetos e os químicos necessários para processar suas fotografias, o inexperiente Barros só iria finalizar suas imagens em Salvador e no Rio de Janeiro.Em Canudos a situação militar era estável, o que possibilitou ao fotógrafo continuar registrando oficiais e batalhões e fazer vistas do arraial, localizando-o geograficamente. Durante os combates de 1º de outubro, os mais sangrentos da guerra, documentou uma bateria de artilharia bombardeando o povoado e, no dia seguinte, produziu a fotografia "400 jagunços prisioneiros", retratando homens, mulheres e crianças que participaram da rendição organizada por Antônio Beatinho. Muitos dos homens que nela aparecem foram degolados. Na manhã do dia 6 de outubro, já consolidada a vitória, fotografou as ruínas das igrejas e o corpo do líder religioso de Canudos que, respeitosamente, titulou como o "Retrato do Bom Jesus Antonio Conselheiro (depois de exumado)".Acabava ali o seu trabalho na guerra. Como Gutierrez, Barros era um voluntário e buscaria uma compensação financeira por envolver-se naquela perigosa empreitada. Poucos dias depois, desembarcou na capital da República e o Jornal do Brasil noticiou que o fotógrafo trazia "nada menos de 65 clichês de fotografias tiradas em Canudos e que serão expostas à venda". No dia 24 de dezembro, inaugurou uma exposição pública na rua Gonçalves Dias, 46. Através de uma “lanterna mágica”, foram projetadas imagens de trincheiras, combates, prisioneiros, vistas do arraial, ruínas das igrejas e o corpo de Antônio Conselheiro.Na época, a capital federal estava em estado de sítio, decretado depois do atentado ao presidente Prudente de Morais e que vitimou o ministro da Guerra, Carlos Machado Bittencourt. Mesmo assim, a tragédia de Canudos ainda instigava a curiosidade da população. Em janeiro de 1898, o Jornal do Brasil registrou que o evento organizado pelo fotógrafo já tinha sido visitado “por mais de 8.000 pessoas, entre as quais muitos dos oficiais do nosso heroico exército e que revêm com a máxima fidelidade os lugares e perigos por que passaram durante essa memorável campanha”.Naquele início de 1898, João Gutierrez também apareceu nos jornais. Mas por outros motivos: os periódicos noticiavam que a Companhia Photographica Brazileira, então em liquidação judicial, tinha sido destruída por um incêndio. É provável que nele tenhamos perdido grande parte do trabalho feito pelo fotógrafo durante a guerra. Mas não tudo. Algumas das suas imagens foram recentemente identificadas no acervo do Museu da República e é possível que ainda existam registros adormecidos em arquivos públicos e particulares. O mesmo acontece com a documentação feita por Flávio de Barros. Certamente ele produziu outras fotografias, além das editadas nos álbuns que hoje pertencem ao Museu da República, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e Casa de Cultura Euclydes da Cunha de São José do Rio Pardo.Reveladas ou a descobrir, as imagens dos dois únicos fotógrafos de Canudos compõem a história visual de uma das mais trágicas guerras do país.Claude Santos é fotógrafo e autor do livro Crônicas de Sangue, o cotidiano da Guerra de Canudos (no prelo).Saiba Mais:CADERNOS DA FOTOGRAFIA BRASILEIRA. Canudos. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2002.ERMAKOFF, George. Juan Gutierrez. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2001.VASQUEZ, Pedro Karp. O Brasil na Fotografia Oitocentista. São Paulo: Metalivros, 2003.
De olho no front
Claude Santos