Depois de dez anos entre captação de recursos, pesquisas e elaboração do roteiro, finalmente chega aos cinemas, no dia 6 de abril, o esperado filme sobre a vida do compositor Angenor de Oliveira, o Cartola. O documentário foi dirigido pelos pernambucanos Lírio Ferreira – que recentemente fez a comédia “Árido Movie” – e Hilton Lacerda, que assinou o roteiro de “Amarelo Manga”. Chama-se “Cartola: música para os olhos”.
A julgar pelo impacto de sua pré-estréia no Festival do Rio, em setembro de 2006, pode-se esperar uma bela acolhida. Na ocasião, a platéia do cinema Odeon interrompeu várias vezes a projeção do filme para aplaudir as imagens históricas, nas quais Cartola cantava suas pérolas ou contava trechos de sua vida. Quando as luzes do cinema se acenderam, percebia-se certa comoção estampada nos rostos dos espectadores.
E não é para menos: a vida de Cartola parece ter sido escrita por um roteirista, já que é rica em elementos dramáticos, viradas do destino e superações milagrosas. Senão, como explicar que um homem que tinha somente o curso primário, que sobreviveu trabalhando como pedreiro, pintor de paredes, lavador de carros, vigia de prédios e contínuo de repartição pública tenha criado obras-primas como “As Rosas não Falam”, “Autonomia”, “Alvorada” e “O Mundo é um Moinho”? Como explicar que só tenha gravado seu primeiro disco aos 66 anos?
Aproveitando a coincidência cabalística de datas que unem Machado de Assis a Cartola – Machado morreu em 1908, ano em que Cartola nasceu –, o filme começa com cenas do enterro do compositor, em 1980. Para o diretor Lírio Ferreira, a aproximação entre Cartola e Machado ilustra a trajetória da cultura brasileira no século XX: “Ambos vieram de classes baixas e atravessaram de forma profunda a cultura nacional. Mas, enquanto Machado marca um tempo em que nossa cultura era mais elitizada, Cartola traz a afirmação de uma cultura popular. Ele é uma das figuras centrais na consolidação do samba como identidade nacional; nesse momento, é o pessoal do samba, do morro, que passa a definir nossa cultura”.
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Figura-chave em diversos eventos marcantes da música brasileira – como a fundação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e a criação do lendário restaurante Zicartola, onde a nata da música brasileira batia ponto –, a história de Cartola se confunde com a história do samba carioca.
Para abordar tantos assuntos em apenas 85 minutos, os diretores optaram pela forma de um grande caleidoscópio. Nele desfilam, misturados a imagens documentais, trechos de clássicos de ficção do cinema brasileiro – que de alguma forma se relacionam com o compositor ou ilustram algum período histórico da vida brasileira – e imagens atuais. A pesquisa, contudo, não foi tarefa fácil, e traz a curiosa relação de Cartola com o cinema: “Até os anos 1940 não se filmava muito negro no Brasil, e a primeira imagem cinematográfica de Cartola está no ‘Orfeu Negro’, de Marcel Camus, feito nos anos 1950, e no qual ele trabalhou como figurante”.
O esforço valeu a pena: algumas das imagens que aparecem no filme são antológicas, como aquela em que o compositor Donga recebe das mãos de um Chico Buarque ainda muito jovem um troféu em homenagem ao primeiro samba registrado da história do Brasil, “Pelo Telefone”, de 1917. Ou outra, comovente, em que Cartola diz que seu único desejo era ser gravado por Roberto Carlos. Não foi. Mas nem por isso ficou frustrado ou reclamou. Este é o personagem pintado no filme: um Cartola nobre que, apesar de todas as dificuldades, nunca se queixou da vida e manteve até o fim uma atitude afirmativa.
O documentário “Cartola” vem também confirmar a força que provém da união entre cinema e música. “Pela importância da música no Brasil, é natural que o cinema se espelhe nela, que a busque como parceira. A música pode aproximar o cinema do grande público”. Uma nova safra de filmes e documentários sobre música brasileira parece confirmar a aposta de Lírio, e talvez a música “Nós Dois” – que Cartola fez para Dona Zica – tenha sido o prenúncio do sempre feliz casamento entre cinema e música: “Está chegando o momento, de irmos pro altar, nós dois...”.
Veja o trailer do documentário na seção Multimídia
De tirar a cartola
Paulo da Costa e Silva