Humberto Mauro (1897-1983) dizia que Volta Grande, pequena cidade da Zona da Mata mineira, era um dos seus melhores estúdios. Na verdade, foi muito mais do que isso. Durante trinta anos, o Rancho Alegre que ele construiu ali foi palco de divertidas histórias familiares, cenário de seus últimos filmes e ponto de encontro de jovens cineastas, artistas e moradores da região. Nos últimos tempos, o lugar andou meio abandonado. Mas agora pode recuperar um pouco de seu antigo brilho. Pelo menos é o que prometem os administradores da cidade. Depois de alugar o rancho, a prefeitura quer transformá-lo no Centro Cultural Humberto Mauro, com direito a cinema e acervo histórico.
Vivendo longe de sua terra natal desde a década de 1920, Mauro decidiu retornar a Volta Grande em 1952, para construir seu próprio estúdio de cinema. Na bagagem levava a participação em momentos cruciais da cinematografia nacional. Entre os anos de 1925 e 1929, fez seus primeiros filmes na vizinha Cataguases, no chamado “ciclo regional do cinema”. Foi nesse período que se tornou discípulo e companheiro de Ademar Gonzaga, com quem lutou por novos projetos e produziu obras de ficção. Mais tarde, ingressou no Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), criado por Getulio Vargas em 1936, dirigindo mais de 300 filmes curtos. “Já nessa época, Volta Grande era o cenário dele. Tudo que fazia para o Ince, ele filmava na cidade. Além disso, via que as novas produtoras que estavam surgindo optavam por obras rurais. Por isso decidiu construir o Rancho Alegre, na expectativa de fazer mais filmes e também coproduções”, destaca a historiadora Sheila Schvarzman, autora do livro Humberto Mauro e as imagens do Brasil.
Mas pouca gente embarcou no seu sonho. Nem mesmo Ademar Gonzaga se animou a produzir ali. Mauro resolveu então usar toda a estrutura montada (que incluía palco, camarim, sala de som e laboratório de revelação) para fazer seus próprios filmes. No mesmo ano em que criou o estúdio, fez o longa-metragem “Canto da saudade”, registrando uma lenda local sobre o amor não correspondido do sanfoneiro e carreiro Galdino pela jovem Maria Fausta. Como quase toda a população foi mobilizada, inclusive para atuar na produção, o cineasta concluiu que Volta Grande havia, de fato, virado uma “cidade cinematográfica”.
Produtora de “Carro de boi” (1974), último documentário feito no Rancho, Valéria Mauro, neta de Humberto Mauro, lembra-se da descontração das filmagens e do clima que reinava na casa do avô. “Era um lugar muito alegre, onde todos os netos sempre se reuniam nas férias. Também era muito frequentado por jovens, cineclubistas. Guardo não só lembranças de seus filmes, mas de tudo que foi gestado ali. Era tudo muito simples, sem muita grana, mas muito feliz”, conta. Quando Mauro faleceu, em 1983, as pessoas foram se esquecendo do lugar e a casa ficou como herança para toda a família. “E aí veio a questão: como tudo ia ser mantido? É difícil; o avô era uma figura que tinha uma relação muito próxima com todos os netos. E todos estão muito afastados uns dos outros. Eu, por exemplo, fui a única que seguiu o cinema”, assinala Valéria, que atualmente trabalha no Canal Saúde, da Fiocruz. Embora tenham suas casas ao redor do Rancho, os filhos de Mauro também diziam não ter condições para conservá-lo.
Só mais recentemente a prefeitura de Volta Grande decidiu entrar na história. “Como não temos dinheiro para comprar o imóvel, resolvemos alugá-lo e, nesse primeiro momento, transferir a Secretaria de Cultura para lá. A casa está habitável, mas ainda é preciso consertar muita coisa. Quando chegamos, estava totalmente abandonada. Só para ter uma idéia, tivemos que tirar sete caminhões de lixo”, diz Luiz Flávio de Castro André, secretário de Cultura do município. O projeto detalhado para a transformação do espaço num centro cultural já está pronto. Mas ainda falta um detalhe essencial: o dinheiro. “A gente encontra muitas portas fechadas. A ideia agora é tentar conseguir recursos pela Lei Roaunet”, espera Luiz André.
É um primeiro passo para que o cineasta volte a ser lembrado em sua terra natal. “Ele era conhecido por quase todo mundo dali como ‘Seu Humberto’. Hoje em dia não sei como está, porque não vou lá há muito tempo. Mas acho que agora ele tem que ser visto com um outro olhar: não mais de forma tão íntima, mas pelo lado da memória, de sua história”, acredita a neta Valéria Mauro.
De volta ao Rancho Alegre
Juliana Barreto Farias