Decifre se for capaz

  • Clique na imagem para ampliarO documento inédito aqui apresentado é uma relação de objetos naturais do Brasil oferecidos ao museu da Academia de Ciências de Lisboa. Foi escrito de próprio punho por Diogo de Toledo Lara Ordonhes, naturalista e sócio da Academia, em data não indicada (provavelmente final do século XVIII). Trata-se de um bifólio de papel de trapo, no qual o texto foi escrito somente no primeiro fólio, com tinta ferrogálica preta, em escrita humanística cursiva, com traços rápidos de mesma espessura e tamanho e ligeiramente inclinados para a direita. A grafia das letras é, em geral, regular, assim como a mancha do texto, com respeito à pauta e às linhas imaginárias. Essas características indicam uma mão hábil, acostumada a lidar com a escrita.

              Não é grande o nível de dificuldade de leitura, mesmo para os leitores não acostumados com este tipo de escrita. Mas algumas grafias podem levar a dúvidas ou interpretações equivocadas por apresentarem variação ao longo do texto. É o caso do s longo, cujo traçado alcança a linha inferior da pauta de escrita, seguido de um s pequeno em contexto de meio de palavra – um leitor não atento pode confundi-los com a letra p. O s maiúsculo em início de palavra se assemelha muito ao i maiúsculo. O s em final de sílaba tem traçado semelhante ao j minúsculo. O d apresenta duas grafias diferentes quanto ao traçado de sua haste, ora longa e inclinada para a esquerda, ora grafada com uma volta para a direita, ligando-se à letra que vem a seguir. A vogal a, algumas vezes, assemelha-se ao o, por ser finalizada com uma volta acima. Por fim, o t minúsculo, em alguns poucos casos, muito se assemelha ao r minúsculo.

              As abreviaturas são constantes e de dois tipos diferentes: por apócope (Real) ou por letras sobrescritas, desenvolvidas como para, grandes, proximamente, grande, Singularidade, muito, dito, qualidade, por, quando.  

              Quanto às características ortográficas da escrita, verifica-se o uso de consoantes dobradas: offereço, Accademia, delles etc.; de h nos artigos indefinidos: hum, huma; de y no final da palavra Boy; de x por ch em buxo; de z por s em Muzêo; dos ditongos ou e ae, em vez de oi e ai, respectivamente: dous, cristaes; de u por o: descuberta, Cuimbra, custumaõ, e a variação entre christaes e cristaes.

     

    Renata Ferreira Costaé professora de Letras na Universidade Tiradentes e autora da tese “Um caso de apropriação de fontes textuais: Memória histórica da capitania de São Paulo, de Manuel Cardoso de Abreu, 1796” (USP, 2012).

     

    Um naturalista pioneiro em São Paulo

    Diogo de Toledo Lara Ordonhes nasceu em 1752, em São Paulo, e morreu em 1826. Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e, de volta ao Brasil, ocupou o cargo de juiz de fora da Vila de Cuiabá, entre 1785 e 1791. Homem erudito, dedicou-se à história natural brasileira, em especial à zoologia – embora o que se conheça de seu trabalho como naturalista sejam apenas fragmentos de uma obra manuscrita sobre ornitologia, a ciência que estuda as aves no espaço.

     

    Solução do “Decifre”

     

                   Rol do que offereço para o Muzêo daReal Accademia

    4 – Stalactites, dous dos quaes Saõ grandes e magnificos. Foraõ tirados de

    huma Gruta proximamente descuberta na Margem Occidental do

    Paraguay acima de hum Prezidio Portuguez chamado Nova Cuimbra

    1 – Chapa grande com Cristaes miudos de roca, entrechassados de quartzos

             e com 2 granetes de ouro

    1 – Grupe de Cristaes de roca com a Singularidade de Se acharem todos

              os de hum Lado passados de inumeraveis Chorles Louros

    1 – Grupe de Christaes pequenos

    4 – Cristaes de roca perfeitos na Sua Cristalizaçaõ nas Suas extre

              midades, e dous de diversa Configuraçaõ. Saõ muito raros.

    1 – diafano Com Cherles pretos

    24 – Cristaes, de roca diafanos, e perfeitos: hum delles he diferente

              Cristalizaçaõ, e da qualidade dos que custumaõ Conter gotas d’agua.

    – Bastantes Christalinos diafanos

    1 – Calculo achado no buxo de hum Boy

    – Varios Ovos de Passaros

    1 – Unha de Tamanduá guassú

    1 – Modêlo de 2 Engenhos para moer Canna, e milho, tocados por impul-

              so d’agua.

    1 – Arco grande do Gentio Cayapó com algumas flexas, apanhadas do

              mesmo quando assaltou huma Fazenda [e] mattou varias pessoas

              no anno de17[86], no Cuyabá.

        Diogo de Toledo Lara Ordonhes

     

    [Transcrição em linguagem atual]

    Rol do que ofereço para o museu da Real Academia

    4 – Estalactites, duas das quais são grandes e magníficas. Foram tiradas de uma gruta recentemente descoberta na margem ocidental do Paraguai, acima de um presídio português chamado Nova Coimbra;

    1 – Chapa grande com cristais miúdos de roca, entrelaçados de quartzos e com 2 granetes de ouro;

    1 – Grupe de cristais de roca com a singularidade de se acharem todos os de um lado passados de inumeráveis chertes louros;

    1 – Grupe de cristais pequenos;

    4 – Cristais de roca perfeitos na sua cristalização e nas suas extremidades, e dois de diversa configuração. São muito raros;

    1 – Diáfano com chertes pretos;

    24 – Cristais de roca diáfanos e perfeitos: um deles é de diferente cristalização e da qualidade dos que costumam conter gotas d’água;

    – Bastantes cristalinos diáfanos;

    1 – Cálculo achado no bucho de um boi;

    – Vários ovos de pássaros;

    1 – Unha de tamanduá-guaçu;

    1 – Modelo de 2 engenhos para moer cana e milho, tocados por impulso d’água;

    1 – Arco grande do gentio caiapó com algumas flechas apanhadas do mesmo quando assaltou uma fazenda e matou várias pessoas no ano de 1786, no Cuiabá.

    Diogo de Toledo Lara Ordonhes